O que é o “estatuto de maior acompanhado” que o Ministério Público pede para Salgado?

O Ministério Público "reconheceu a situação" de incapacidade de Salgado e requereu o regime de acompanhamento no âmbito do caso BES. Mas afinal que estatuto é este?

O Ministério Público “reconheceu a situação” de incapacidade de Ricardo Salgado – derivada da doença de Alzheimer – e requereu o regime de acompanhamento para o ex-líder do BES, no âmbito do julgamento do processo do BES/GES, que decorre. Ainda assim, o advogado do ex-líder do BES não considera que o estatuto de maior acompanhado resolva o problema. Mas afinal que estatuto é este?

O regime do acompanhamento tem como objetivo “garantir o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício dos seus direitos e a observância dos deveres do adulto, focando-se na pessoa e não apenas no seu património”.

Raquel Caniço, advogada da Caniço Advogados, explica que este regime jurídico – em vigor em Portugal desde 2019 – revogou o anterior regime jurídico da Interdição e da Inabilitação.

“Este estatuto que pode ser pedido pelo próprio e por terceiros, designadamente o Ministério Público junto do tribunal, destina-se a pessoas adultas que não consigam, de um modo consciente, livre e autónomo, sem apoio ou intervenção de outra pessoa, cumprir as suas obrigações, cuidar dos seus bens e exercer os seus direitos”, diz a advogada. O acompanhamento “é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário e ponderadas as provas, designadamente uma perícia às condições psíquicas do acompanhante”, acrescenta.

“Este regime limita-se ao mínimo necessário para que a autodeterminação e capacidades do beneficiário possam, dentro dos circunstancialismos, ser asseguradas; não haverá lugar a acompanhamento se os deveres de assistência e cooperação bastarem para a proteção da pessoa“, lê-se no site oficial do Ministério Público. Apenas por decisão judicial é que o acompanhamento cessa ou é alterado.

Para beneficiar deste regime basta ser maior de idade, impossibilitado, quer por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento, de exercer os seus direitos, de forma “plena pessoal e consciente ou cumprir os seus deveres”.

Cabe ao tribunal decidir se é adequado o acompanhamento ou não, podendo ser requerido, independentemente de autorização, pelo Ministério Público, mas também pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto ou por qualquer parente sucessível. Mas a autorização do beneficiário pode ser retirada pelo tribunal.

Em termos de prazos, o acompanhamento pode ser requerido no decorrer do ano anterior ao da maioridade do beneficiário, para que possa produzir efeitos a partir desta, ou a todo o tempo, na maioridade. “No caso de ser requerido na menoridade, as responsabilidades parentais ou a tutela manter-se-ão até haver decisão transitada em julgado sobre o acompanhamento”, explicam.

Será o acompanhado ou o seu representante legal que escolhem o acompanhamento. Mas, na falta de escolha, o acompanhamento é atribuído à pessoa que melhor proteja o interesse do beneficiário, havendo uma ordem de referência não taxativa. Por norma, o cônjuge, os descendentes e os ascendentes não se podem escusar ou ser exonerados. A lei prevê que pode ser designado mais do que um acompanhante em simultâneo repartindo as funções. “O acompanhante tem o dever de se abster de agir em situação de conflito de interesses com o acompanhado”, referem.

O acompanhamento deve limitar-se ao mínimo indispensável. Porém, em função de cada caso e independentemente do pedido, pode o tribunal atribuir ao acompanhante as funções associadas aos seguintes regimes: o exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir; a representação geral ou representação especial com indicação expressa das categorias de atos para que seja necessária; a administração total ou parcial de bens; a autorização prévia para a prática de determinados atos ou categoria de atos e intervenções de outro tipo, que estejam devidamente explicitadas”, lê-se.

Entre as funções do acompanhante está o dever de assegurar o bem-estar e a reabilitação do acompanhando, “mantendo de forma permanente o contacto com ele”. No mínimo, as visitas devem ser mensais ou outra periodicidade considerada apropriada pelo tribunal. “O processo de acompanhamento tem natureza urgente e aplica-se-lhe as regras da jurisdição voluntária, com as necessárias adaptações”, explicam.

O pedido efetuado ao Ministério Público deve ser acompanhado de toda a documentação disponível relativamente ao beneficiário e ainda da respetiva família. Quando instaurada pelo Ministério Público, o adulto beneficiário de acompanhamento está isento de custas processuais. O tribunal revê as medidas de acompanhamento de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.

“Designa-se ‘acompanhante’ uma pessoa, maior e no pleno exercício dos seus direitos, que é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente. Na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respectivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário, podendo ser um cônjuge, um progenitor, um irmão, entre outros que a lei indica especificamente”, concluiu a advogada.

Este estatuto que pode ser pedido pelo próprio e por terceiros, designadamente o Ministério Público junto do tribunal, destina-se a pessoas adultas que não consigam, de um modo consciente, livre e autónomo, sem apoio ou intervenção de outra pessoa, cumprir as suas obrigações, cuidar dos seus bens e exercer os seus direitos. O acompanhamento é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e directa do beneficiário e ponderadas as provas, designadamente uma perícia às condições psíquicas do acompanhante”

Raquel Caniço, advogada

 

O que considera a defesa de Salgado?

Para o advogado Francisco Proença de Carvalho, este estatuto “não altera nada”. Apesar de o Ministério Público ter proposto o estatuto de maior acompanhado para Ricardo Salgado, este “já tem a sua cuidadora informal”, que é a mulher, Maria João Salgado, a qual “é uma pessoa absolutamente essencial” para o seu cliente, disse.

A defesa admitiu que “não estava a contar” com esta iniciativa do Ministério Público, da qual ainda não foi notificado, mas disse que, com este requerimento, “finalmente, o Ministério Público reconhece a situação” de incapacidade de Ricardo Salgado, ou seja “aquilo que a defesa anda a dizer há três anos”.

“Dentro dos seus deveres de objetividade e de legalidade, o Ministério Público está a fazer o procedimento adequado. No fundo, reconhece aquilo que dizemos há muito tempo, que Ricardo Salgado não tem condições de se defender, não tem condições cognitivas de participar no processo e isso tem de ter os seus efeitos” e consequências, concluiu o causídico.

Francisco Proença de Carvalho referiu a propósito que na audiência de julgamento em que está a depor como testemunha o antigo presidente do Banco Espírito Santo Investimento, José Maria Ricciardi, que está a falar de factos ocorridos há mais de 10 anos, sobre os quais “só Ricardo Salgado poderia esclarecer”.

Neste contexto, o advogado considera assim que o direito de defesa de Ricardo Salgado “está esmagado”, sendo isso “uma evidência”. Francisco Proença de Carvalho entende ainda que, apesar do estatuto de maior acompanhado pedido pelo MP, Ricardo Salgado continua a “não ter condições de se defender”.

De acordo com o documento assinado pelos procuradores, o Ministério Público quer a emissão de certidão de documentos entregues pela defesa de Ricardo Salgado aquando da sua contestação e das suas declarações em tribunal realizadas na terça-feira, quando fez a identificação formal como arguido no julgamento, com vista à instauração do processo de maior acompanhado.

Ricardo Salgado está acusado de 62 crimes, alegadamente praticados entre 2009 e 2014, incluindo associação criminosa, corrupção ativa no setor privado, burla qualificada, infidelidade, manipulação de mercado, branqueamento de capitais e falsificação. A queda do GES causou prejuízos superiores a 11,8 mil milhões de euros.

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