Estafetas são trabalhadores das plataformas? Não há consenso nos tribunais e lei pode mudar este ano

Estafetas são trabalhadores das plataformas? Não há consenso nos tribunais portugueses, pelo que pode ser preciso rever a lei, apontam advogados. E o Governo já mostrou abertura para discutir mexida.

O ano que acaba de começar poderá trazer mudanças à lei que tem deixado a porta aberta a que os estafetas sejam reconhecidos como trabalhadores das plataformas digitais. Sem consenso nos tribunais, os advogados ouvidos pelo ECO admitem a necessidade de rever essas regras. E o Governo não o descarta: ainda em dezembro, a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, salientou que a maioria das decisões tem negado contratos aos estafetas.

Voltemos, por momentos, a 1 de maio de 2023. Foi nessa data que entraram em vigor as dezenas de alterações ao Código do Trabalho feitas pelo anterior Governo, entre as quais estava a criação de um mecanismo que permite aos estafetas serem considerados trabalhadores dependentes das plataformas digitais, desde que haja indícios de subordinação, como a organização do tempo de trabalho e a fixação das remunerações.

Com base nessa lei, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) levou a cabo uma ação de fiscalização no terreno, que resultou em centenas de processos nos tribunais portugueses pelo reconhecimento de contratos de trabalho entre os estafetas e as plataformas digitais. Mas as decisões têm estado longe do consenso.

De acordo com o relatório enviado pela ACT ao Parlamento, a que o ECO teve acesso, até ao final de 2024 já eram conhecidas 16 decisões de tribunais de primeira instância que reconheceram contratos de trabalho com 31 estafetas, mas também 53 decisões que foram no sentido oposto (relativamente a 66 estafetas).

E mesmo nos tribunais de segunda instância, não há concordância. De um lado, estão 12 decisões que reconheceram um contrato de trabalho a 12 estafetas. Do outro, três decisões que o rejeitaram relativamente a 33 estafetas.

Decisões dos tribunais, segundo a ACT

Primeira instância: 16 decisões reconheceram contrato a 31 estafetas VS 53 decisões não reconheceram contrato a 66 estafetas;
Segunda instância: 15 decisões reconhecem contrato a 12 estafetas VS 3 decisões não reconhecem contrato a 33 estafetas.

“A grande maioria das decisões vão no sentido do não reconhecimento do contrato de trabalho e vamos seguir as decisões dos tribunais“, sublinhou ainda em dezembro a ministra do Trabalho, perante estes dados, sendo que já na sua primeira intervenção pública, em abril, Palma Ramalho tinha adiantado que as regras do trabalho nas plataformas digitais seriam um dos temas a que será dada atenção, no âmbito da revisitação das dezenas de alterações que foram feitas à legislação laboral.

Entre os parceiros sociais, as confederações empresariais já deixaram claro que querem que essa revisitação seja uma das prioridades da Concertação Social em 2025. E tanto a Confederação Empresarial de Portugal (CIP), como a Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) identificaram, em declarações ao ECO, o trabalho nas plataformas digitais como um dos pontos quentes que é preciso avaliar e debater.

E, sem consenso nos tribunais portugueses, os próprios advogados também já admitem a necessidade de uma nova reflexão sobre estas regras. Por exemplo, Madalena Caldeira, coordenadora da área do Direito do Trabalho do escritório de Lisboa da Gómez-Acebo & Pombo, realça que “é inegável a falta de consenso nos tribunais” e defende que tal não é resultado apenas da “novidade” da norma, “pelo que tudo aponta para a necessidade de revisão da lei”.

Parece-me essencial que haja uma profunda revisão da lei nesta matéria, prevendo um regime especial para o trabalho digital, para melhor refletir as realidades do trabalho digital.

Inês Arruda

Sócia da Pérez-Llorca Lisboa

“A falta de consenso nos tribunais sobre a natureza da relação de trabalho entre as plataformas e os seus colaboradores é um claro indicador de que o direito do trabalho, tal como o conhecemos, não está preparado para responder às especificidades do trabalho digital”, observa, na mesma linha, Inês Arruda, sócia da Pérez-Llorca Lisboa, que considera “essencial” haver uma “profunda revisão da lei nesta matéria“.

Na visão desta advogada, deveria ficar previsto um regime especial para o trabalho digital “para melhor refletir as realidades do trabalho digital e proporcionar maior segurança jurídica tanto para os trabalhadores quanto para as plataformas”. “Embora existam argumentos (igualmente) válidos para ambos os lados do debate, o trabalhador digital não se encaixa na definição tradicional de trabalhador”, afirma Inês Arruda.

A advogada sugere que, num eventual regime especial, poderia ficar fixado que os estafetas, “independentemente do seu status“, têm acesso a direitos básicos, como acesso a proteção social, condições de trabalho justas e mecanismos de resolução de litígios.

No mesmo sentido, Rui Valente, sócio da Garrigues, salienta que poderia ser “boa ideia” estudar um regime especial, que “tente salvaguardar a posição jurídica dos profissionais”, ao mesmo tempo que se fugiria à missão “que parece impossível, ou quase, de tentar encaixar esta realidade na legislação atual, ainda muito inspirada no modelo tradicional do trabalho“.

Confronto de argumentos

Depois da fiscalização no terreno levada a cabo pela ACT ao longo de 2023, as primeiras decisões dos tribunais portugueses foram conhecidas no primeiro trimestre de 2024, ano que acabaria por ficar marcado por múltiplas sentenças contraditórias entre si. Mas, afinal, que argumentos têm usado os juízes?

Vamos a exemplos. Na primeira instância, o Tribunal de Castelo Branco reconheceu contratos de trabalho a quatro estafetas da Uber Eats, com base, nomeadamente, no facto dessa plataforma estabelecer os limites mínimos e máximos do valor pago aos estafetas, e determinar regras específicas para a prestação da atividade.

“Conclui-se que a Uber não se limita a encomendar ao estafeta a entrega do produto, mas também estabelece a forma como deverá fazê-lo, controlando todos os aspetos através da aplicação e tomando as decisões finais, sendo o preço, a forma de pagamento e a taxa de entrega fixados exclusivamente pela empresa. Por outras palavras, a partir do momento em que o estafeta se liga à plataforma ele passa a integrar um serviço por ela organizado“, lê-se na sentença.

"Conclui-se que a Uber não se limita a encomendar ao estafeta a entrega do produto, mas também estabelece a forma como deverá fazê-lo.”

Tribunal do trabalho de Castelo Branco

Já em Viseu, o Tribunal reconheceu contratos de trabalho a dois estafetas da Glovo, argumentando que a própria app é um instrumento de trabalho. Uma vez que esse instrumento é propriedade da plataforma, há indícios de subordinação, entendeu o Tribunal, neste caso.

Em contraste, o Tribunal de Lisboa negou um vínculo a um estafeta da Uber Eats, atirando que “não é aceitável que quem trabalha quando quer, como quer, quanto quer e sem consequências possa ter uma realidade de contrato de trabalho”.

“É, diga-se com esta simplicidade, o estafeta que escolhe quanto quer receber”, lê-se nessa mesma sentença, que destaca ainda que o estafeta “não tem qualquer indumentária, qualquer código ou conduta, e nem a sua mochila térmica tem de obedecer a algo que a relacione com a Uber“.

"Não é aceitável que quem trabalha quando quer, como quer, quanto quer e sem consequências possa ter uma realidade de contrato de trabalho.”

Tribunal do trabalho de Lisboa

Já na segunda instância, a Relação de Guimarães deu razão a um estafeta, salientando que, “a partir do momento em que se liga à plataforma [este] passa a integrar um serviço por ela organizado que não se limita a encomendar a recolha e a entrega da mercadoria, mas estabelece a forma como o deve fazer, controlando diversos aspetos através da aplicação, decidindo quanto ao preço, a forma de pagamento e a taxa de entrega, nada recebendo o estafeta, em regra, do cliente, ficando o processo de faturação a cargo da plataforma”.

No acórdão, que está disponível online e não revela a que plataforma se refere, lê-se ainda que “o estafeta está sujeito a diversas formas de controlo e de avaliação algorítmica por parte da plataforma, o que não pode deixar de ser considerado uma manifestação do poder de direção e disciplinar que a empresa que gere a plataforma exerce, o que evidencia, sem margem para dúvida, a dependência própria da relação laboral“.

No entanto, mais a sul no mapa, a Relação de Évora mais recentemente chegou à conclusão oposta em relação a cinco estafetas da Uber Eats, admitindo que há, sim, dúvidas quanto ao reconhecimento da app como instrumento de trabalho, mas concluindo que não é essa a correta classificação.

Mais, a plataforma não fixa horários e não paga periodicamente uma quantia certa, pelo que não está em causa uma relação de trabalho dependente, de acordo com o acórdão da Relação de Évora, a que o ECO teve acesso.

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