Manobras dilatórias dos advogados com multas até 10 mil euros. O que diz o setor?
Grupo de trabalho “Megaprocessos e processo penal" defende que as manobras dilatórias dos advogados podem resultar em multas até 10 mil euros e infrações disciplinares. Advogados discordam.
O Conselho Superior da Magistratura apresentou há uma semana propostas para acelerar os megaprocessos, depois do trabalho de ano e meio de um grupo de juízes e um magistrado do Ministério Público. Redução da instrução ao debate instrutório onde só haverá lugar às diligências que o Juiz decidir, redução dos prazos processuais, limitação na arguição de nulidades e irregularidades nos processos bem como dos incidentes de recusa e limitação dos recursos, só permitido recurso para o STJ em caso da condenação em pena superior a 12 anos de prisão foram algumas das propostas. Bem como permitir o recurso a inteligência artificial para elaborar acórdãos, criação do assessor virtual para juízes ou assessores técnicos privativos para juízes, taxas de justiça mais altas para os megaprocessos, criação de equipas especiais de funcionários judiciais, peças processuais distribuídas por módulos e salas de audiência com computadores, monitores e sistemas de som adequados.
O grupo de trabalho “Megaprocessos e processo penal: carta para a celeridade e melhor justiça” remeteu estas e outras conclusões à ministra da Justiça, aproveitando o facto de o Governo estar a preparar alterações de fundo ao processo penal.
O grupo inclui seis juízes e Rui Cardoso, procurador-geral adjunto e atualmente diretor do DCIAP e é coordenado por Helena Susano, atualmente a magistrada responsável pelo julgamento do caso BES/GES, que julga Ricardo Salgado, ex-homem forte do BES. E sem nenhum advogado. E foi precisamente a proposta de aplicação de multas para os expedientes dilatórios dos advogados dos arguidos – que poderão chegar a um montante superior a 10 mil euros e com participações disciplinares contra os advogados – que levou, desde logo reações negativas de vários advogados e da bastonária da Ordem dos Advogados (OA), Fernanda de Almeida Pinheiro, a criticar este relatório. A líder do órgão considera que as medidas propostas são “inaceitáveis” e uma “tentativa intolerável de condicionar o trabalho do advogado”.
O que dizem os advogados?
“Isto configura uma tentativa intolerável de condicionar o trabalho do advogado, que assim vê a sua independência e autonomia profissionais coartadas pelo receio de poder estar a praticar um ato que possa ser sancionado, o que representa uma clara violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa”, refere em comunicado a bastonária. Outros dos pontos que a OA considera inadmissível é a possibilidade de uma restrição da instrução ao debate instrutório. “A instrução deve ser uma fase efetiva de verificação da acusação, permitindo a produção de prova, sob pena de violação dos princípios do contraditório e do direito de defesa e de igualdade de armas no processo-crime”, sublinha. A OA lamentou ainda que o Grupo de Trabalho tenha contado com a presença de juízes e de um magistrado do Ministério Público, mas que não tenha sido integrado por qualquer advogado, que teria contribuído para trazer um “maior equilíbrio às propostas apresentadas”.
No mesmo programa, o advogado e presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, Paulo de Sá e Cunha defendeu que estas medidas “não surpreendem porque não são inovadoras”. Mas “há um pano de fundo que não é bom. Gostava de ter visto neste grupo de trabalho um advogado. Porque não? Os advogados também fazem parte do sistema. Não só não está como a ideia que se transmite aqui de forma subliminar é o de que a grande preocupação é combater as manobras dilatórias. Há muitos processos onde não as há e eles são na mesma lentos. Estas são o fruto de casos muito mediáticos com protagonistas que chama muito as atenções. Mas não podemos confundir uma parte restrita com o todo. É sempre mau quando se fazem mudanças legislativas restritas e exceções a alguns casos. Maior parte dos advogados não pratica expedientes dilatórios por dá cá aquela palha. Essa ideia é uma ideia que distorce a perspetiva da questão que se levanta”, concluiu o advogado.
Estas medidas levaram também o advogado António Garcia Pereira, a enviar uma carta aberta à OA – antes de Fernanda de Almeida Pinheiro tomar uma posição pública sobre a matéria – defendendo que as propostas “põem em causa os mais basilares e constitucionalmente consagrados princípios do processo justo e equitativo e das garantias de defesa, enquanto e muito significativamente não é apresentada pelo CSM uma única proposta de obrigação ou, sequer, de um mínimo de comprometimento dos Juízes (desde logo, quanto ao cumprimento de prazos ou quanto à sua efetiva responsabilização em caso de decisões grosseiramente ilegais), na pior e mais bafienta lógica de que se Justiça não temos, tal apenas se deve aos próprios cidadãos e aos Advogados que os representam”, diz o advogado, exortando a bastonária a mobilizar a classe “para este basilar combate democrático por uma Justiça verdadeiramente justa”. Dizendo que “o primeiro e principal dever estatuário da Ordem dos Advogados Portugueses foi assim definitivamente esquecido e enterrado por esta? Por mim, e creio que muitos Colegas e muitos cidadãos me acompanharão, não deixarei nunca de defender e de proclamar, parafraseando José Carlos Ary dos Santos: Advogado castrado, não!”, concluiu.
As propostas “põem em causa os mais basilares e constitucionalmente consagrados princípios do processo justo e equitativo e das garantias de defesa, enquanto e muito significativamente não é apresentada pelo CSM uma única proposta de obrigação ou, sequer, de um mínimo de comprometimento dos Juízes (desde logo, quanto ao cumprimento de prazos ou quanto à sua efetiva responsabilização em caso de decisões grosseiramente ilegais), na pior e mais bafienta lógica de que se Justiça não temos, tal apenas se deve aos próprios cidadãos e aos Advogados que os representam.
O advogado José Costa Pinto – candidato a bastonário – questiona: “é possível discutir uma justiça mais célere e melhor sem a participação dos advogados? Analisando as propostas, a resposta é evidente: não”, escreveu, num artigo de opinião publicado no Jornal Económico. “No entanto, o que emerge deste documento é uma insistente preocupação em punir alegadas manobras dilatórias – um rótulo muitas vezes atribuído ao legítimo exercício do direito de defesa. Entre as medidas sugeridas, destacam-se multas por atos considerados manifestamente infundados e até a possibilidade de processos disciplinares contra advogados, a serem instaurados pela própria Ordem. A mensagem subliminar é clara: os advogados passaram a ser vistos como um entrave à celeridade da justiça. Como se não bastasse a crescente inversão do processo penal, onde se perseguem advogados para investigar os seus clientes, colocando em causa pilares essenciais da profissão – como o sigilo profissional e a independência –, agora propõe-se que sejamos penalizados simplesmente por defender quem tem direito a ser defendido”, concluiu.
O atual presidente do Conselho Regional de Lisboa – e também candidato a bastonário, João Massano, defende que “é bem patente que as medidas anunciadas pretendem fazer imputar aos advogados tudo aquilo que corre mal na Justiça — os únicos que, impreterivelmente, cumprem os prazos fixados por lei —, sem que uma única palavra seja proferida quanto aos atropelos da lei. Atropelos estes, cometidos, diariamente, por parte dos Senhores Magistrados, nomeadamente, quando somos confrontados com os atrasos escandalosos por não cumprirem os prazos legalmente estabelecidos. Em suma, tais propostas mais não são do que uma anunciada tentativa de aniquilar a Justiça que se pretende que exista num Estado de Direito Democrático”.
O advogado António Jaime Martins, candidato ao Conselho Superior da OA, defendeu igualmente, num artigo de opinião publicado no Diário de Notícias que “é certo que a morosidade judicial continua a constituir um problema, por vezes mais empolado do que real. Mas se existem pendências acumuladas, falta de meios materiais e humanos e sucessivas reformas falhadas que tardam em oferecer resultados concretos, o caminho não pode, nem deve ser o de restringir direitos fundamentais dos cidadãos, sejam os da tutela jurisdicional efetiva, seja o próprio direito de defesa dos arguidos. Aceitar como normal num Estado de Direito anquilosar e constranger o exercício do mandato forense pelos advogados com sanções patrimoniais e/ou queixas disciplinares por, alegadamente, usarem expedientes “dilatórios” é inexoravelmente grave e deve obrigar-nos, enquanto comunidade, a refletir de forma muito séria como, vividos 50 anos em democracia, estamos dispostos a aceitar tão rude golpe na democracia”, sublinha.
Telmo Semião, candidato do Conselho Regional de Lisboa da OA, sublinhou que “não vale condenar os advogados em multas até 10 mil euros e em participação disciplinar quando atuam no exercício do mandato forense. Não vale limitar os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, pondo em causa o princípio constitucional do direito à tutela jurisdicional efetiva, previsto no art. 20° da CRP. Não vale responsabilizar exclusivamente os arguidos e os seus mandatários pela lentidão na tramitação dos processos judiciais”. Outro candidato ao mesmo órgão, Vasco Pais Brandão, também sublinha “as recentes notícias sobre as propostas do CSM de multar os advogados por litigância de má-fé, restringir recursos para o Supremo ou para o TC, constitui mais um (grave) atentado ao Estado de Direito e à nossa profissão, apenas permitido por efeito do infeliz estado de permeabilidade e fragilidade que decorre da falta de relevância das OA, da sua ausência nas matérias mais importantes, do que se tornou um pequeno peão no tabuleiro de xadrez da Justiça”.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Manobras dilatórias dos advogados com multas até 10 mil euros. O que diz o setor?
{{ noCommentsLabel }}