IA surge mais de 30 vezes no Programa do Governo. Onde será aplicada nesta legislatura?

Cardápio de medidas prevê uma aplicação quase transversal de inteligência artificial (IA) nas políticas públicas, incluindo em áreas sensíveis, como forças de segurança, justiça e impostos.

O programa do novo Governo inclui mais de 30 referências à expressão “inteligência artificial” (IA), mais do dobro do anterior, e com objetivos muito distintos. Por exemplo, pretende-se incentivar a adoção destas tecnologias pela indústria e usá-las para melhorar a educação e o combate à evasão fiscal. O uso de IA na Administração Pública é, aliás, um dos desígnios da Reforma do Estado agora prometida por Luís Montenegro.

Anteriormente, o Executivo já estava a trabalhar numa Agenda Nacional para a IA, enquadrando, por exemplo, o desenvolvimento do modelo de inteligência artificial Amália, vulgarmente apelidado de ‘ChatGPT português’. Mas a medida, originalmente prometida até ao final do primeiro trimestre, foi ‘atropelada’ pela convocação de eleições antecipadas.

Agora, o Governo promete “finalizar e implementar” esta agenda, missão que poderá caber ao novo ministro Adjunto e da Reforma do Estado, Gonçalo Saraiva Matias (a anterior ministra da tutela, Margarida Balseiro Lopes, vai assumir competências na área da Cultura). A nova equipa governativa conta ainda com Bernardo Correia como secretário de Estado para a Digitalização, até aqui diretor-geral da Google Portugal, uma das tecnológicas mundialmente mais avançadas nesta área.

Na tomada de posse dos novos governantes, o primeiro-ministro prometeu uma “guerra à burocracia” nesta legislatura, e conta com a IA como aliada nesse combate: “A digitalização, incluindo o uso de inteligência artificial, deve ser acelerada, assegurando a interoperabilidade de sistemas e o fluxo automático de informação entre serviços (como entre AT e Segurança Social), para reduzir erros, pedidos repetidos e custos de contexto”, explica o Programa do Governo, enviado à Assembleia da República durante o fim de semana. A intenção é garantir que o Estado não pede aos cidadãos e às empresas informação que já conste nos seus muitos sistemas.

O documento prevê ainda “equipar a Administração Pública transversalmente com ferramentas tecnológicas mais modernas e de colaboração e de inteligência artificial”. A meta é promover “a adoção de IA nos serviços, melhorando a satisfação dos cidadãos” com os serviços públicos e “reduzindo a pressão” sobre os funcionários do Estado.

Ainda na senda da Reforma do Estado, o Governo tenciona “aprofundar a reforma” dos serviços públicos com recurso a IA, quer ao nível dos serviços que lidam diretamente com os cidadãos, quer ao nível do funcionamento nos bastidores. A promessa é a de expandir “os serviços cujos processos podem ser tramitados integralmente por via digital, assegurando assistência presencial ou remota” aos mais tecnicamente excluídos.

Nestes pontos, o modelo Amália poderá ser fulcral — se vier, como se espera, a permitir uma interação com os cidadãos em linguagem natural, nomeadamente texto e voz.

O Amália está a ser desenvolvido por um consórcio de universidades, de onde se destacam a Universidade Nova de Lisboa e o Instituto Superior Técnico. O projeto de 5,5 milhões de euros encontra-se atualmente na segunda fase, estando previsto que até ao final de setembro seja disponibilizada à Agência para a Modernização Administrativa (AMA) uma versão base do modelo, para que possa começar a ser implementado nos serviços do Estado.

A “revolução” em curso

O Programa do Governo também estabelece visões de como a IA pode ser usada a um nível mais setorial, partindo do pressuposto de que “o digital permeia praticamente todas as esferas do quotidiano, e no qual a inteligência artificial está a mudar a forma de realizar tarefas, criar conteúdos, aceder e assimilar informação”.

Desde logo, nas Finanças. O Governo tenciona que a IA ajude o Fisco a melhor detetar fraudes e fugas aos impostos. A tecnologia é altamente eficaz a detetar padrões complexos em conjuntos de dados que facilmente escapariam ao olho humano, mesmo o mais experiente. Assim, o cardápio de medidas do Governo contempla a definição de “um programa de combate à fraude e evasão fiscais”, garantindo, porém, que não serão comprometidas “as garantias constitucionais dos contribuintes”.

No ensino, é prometido o desenvolvimento e implementação de uma Estratégia para o Digital na Educação que potencie, entre outras coisas, a “criação de recursos educativos digitais inovadores”, e que se baseie também “no potencial da IA para o apoio personalizado à aprendizagem dos alunos”. Isto evoca uma promessa anterior de Luís Montenegro, quando anunciou em novembro, no palco da Web Summit, que pretende dar “a cada aluno um tutor educativo de IA” adaptado aos currículos nacionais.

A qualificação é outra das preocupações. Pretende-se “promover iniciativas de exposição às novas tecnologias para crianças e jovens, por exemplo durante os programas de férias escolares, através da realização de atividades de sensibilização, motivação e promoção de competências em programação, robótica, comunicação digital e IA”.

Para a população mais em geral, promete-se uma aposta “na qualificação dos portugueses em competências tecnológicas e digitais”, para preparar os trabalhadores para o que o Governo apelida de “revolução da inteligência artificial”, sem se referir como.

Para o Executivo, “as escolas e instituições de ensino têm um papel duplo neste paradigma”. “Por um lado, apoiar e preparar alunos e famílias a lidar com um mundo cada vez mais digital, desenvolvendo competências que serão cada vez mais relevantes para a sua empregabilidade; por outro lado, discernir de que forma, e em que momentos, a tecnologia pode ser um potenciador das aprendizagens e do desenvolvimento das crianças e jovens em condições de equidade”, justifica o programa.

Ainda dentro das qualificações, a IA é também uma das em que o Executivo pretende desenvolver “programas de qualificação e requalificação profissional”. Para tal, espera contar “com o apoio dos centros tecnológicos setoriais”.

Passando à Justiça, a ministra Rita Alarcão Júdice, que transita da equipa anterior, terá a incumbência de “criar um código de conduta” para o uso de IA pelas diferentes entidades do setor, com enfoque nos direitos fundamentais.

A tecnologia servirá ainda para garantir a “publicitação de toda a jurisprudência, incluindo sentenças judiciais de primeira instância e decisões dos meios alternativos de resolução de litígios e arbitragem”, ao permitir a anonimização automática dos documentos, confia o Governo.

Dentro da chancela da segurança, prevê-se o uso de “meios tecnológicos preditivos” e de IA pelas forças de segurança. Esta medida insere-se no “investimento em meios tecnológicos” que reforcem “a capacidade de vigilância”. Não são especificadas as aplicações concretas.

De resto, nem a habitação escapa à onda da IA. Numa secção dedicada à Juventude, o programa estipula o uso de tecnologias de IA para “agilizar os processos e evitar atrasos” no programa Porta 65 Jovem. É uma iniciativa já existente que apoia jovens dos 18 aos 35 anos no arrendamento habitacional, pagando uma percentagem da renda do imóvel sob a forma de subvenção mensal.

Gonçalo Saraiva Matias é o novo ministro Adjunto e da Reforma do EstadoHenrique Casinhas/ECO

IA como íman de investimento

Aplicações que recorram a IA podem ainda desbloquear eficiências nas empresas, motivo pelo qual esta é também vista como essencial para a competitividade económica. Nesse sentido, o Executivo promete às empresas “lançar programas de apoio ao investimento na implementação de tecnologias avançadas”. A essa juntam-se outras, como a robótica, a automação e a “manufatura aditiva” (mais conhecida por impressão 3D).

Outra meta é “apoiar a investigação, a inovação e o empreendedorismo em IA, bem como estimular a adoção e a utilização de IA nas empresas”. Sobre este ponto não se estabelecem medidas concretas, no entanto é público que a Comissão Europeia está a desenvolver uma estratégia para fomentar o uso de IA pelas pequenas e médias empresas (PME) europeias.

Já para facilitar a atração de investimento estrangeiro, o Governo quer empregar IA para disponibilizar “informação centralizada e simplificada, em linguagem bilingue, sobre os procedimentos administrativos e legislação relevante para as empresas”. Aparentemente, um processo essencialmente assente na tradução da língua portuguesa.

É notório que o aumento do uso de IA a nível global tem gerado novas oportunidades económicas, com o país bem posicionado para atrair até 12 mil milhões de euros de investimento em data centers nos próximos cinco anos, estimou recentemente uma associação do setor — sobretudo depois de os EUA terem retirado as restrições à compra de chips avançados para IA por parte de entidades estabelecidas em Portugal. O Governo não quer deixar escapar esse filão de investimento, prometendo incentivos “à instalação e desenvolvimento” de centros de dados com elevados padrões de segurança, resiliência, eficiência energética e sustentabilidade.

Além disso, o Governo promete “investir no desenvolvimento de uma infraestrutura computacional de alto desempenho em Portugal que permita a investigação, inovação, desenvolvimento e comercialização de soluções” de IA”. Aqui deve entrar a Fábrica de IA em que o Governo participa, em conjunto com Espanha, Turquia e Marrocos, que se materializa num supercomputador instalado em Barcelona, ou as novas Gigafábricas de IA, que serão infraestruturas de grande dimensão em que a Comissão Europeia pretende coinvestir em conjunto com consórcios privados.

Resposta a novos desafios

A emergência da IA nos últimos anos suscitou novos desafios, prendendo-se um deles com o dos direitos de autor. Algumas destas ferramentas são ou foram treinadas com conteúdos protegidos — e, a nível internacional, têm-se travado batalhas judiciais para definir o que pode ou não ser considerado uso legal de obras protegidas (como este mesmo artigo que está a ler), ou se deve haver compensação. É o caso do processo que coloca frente a frente o jornal norte-americano The New York Times e a empresa que criou o ChatGPT, a OpenAI.

Ora, o próprio Estado está a ser afetado por esse dilema. O desenvolvimento do modelo Amália com recurso a informação recolhida da internet, incluindo artigos dos jornais portugueses ‘eternizados’ no Arquivo.pt — projeto gerido pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) –, tem suscitado dúvidas sobre a proteção dos direitos de autor, incluindo da parte do Sindicato dos Jornalistas: “Importa […] perceber como operará este modelo no recurso e referência a conteúdos jornalísticos, que vêm sendo canibalizados sem atribuição por inteligências artificiais”, avisou em maio, num comunicado.

O Programa do Governo não é omisso sobre essa matéria. Nele, o Executivo de Luís Montenegro assume a intenção de “ajustar os direitos autorais às novas realidades digitais, nomeadamente no que diz respeito à IA”. Não se conhecem detalhes sobre o que se pretende nesta matéria.

Para finalizar, é pretensão do Governo “ampliar as competências e o âmbito de atuação dos reguladores” também nesta vertente, mas também noutras ligadas ao universo digital, como os criptoativos. No que à IA diz respeito, tem entrado em vigor, gradualmente, o novo regulamento europeu da IA. A próxima fase acontece já em agosto de 2025, prazo para o novo Governo determinar qual será em Portugal a autoridade de fiscalização, com a Anacom a ser uma forte candidata.

O Programa do Governo começa a ser debatido no Parlamento esta terça-feira. O documento será votado na quarta-feira, tendo aprovação já garantida.

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