Recrutamento “às cegas”. Quando se escolhe sem saber género, idade ou até experiência profissional
Embora seja uma tendência, este tipo de recrutamento ainda não está completamente implementado em Portugal. O país ainda é muito conservador.
A forma como se atrai talento está a mudar, bem como a maneira como se retêm os melhores profissionais. E, a este ritmo de transformação, nem mesmo os próprios processos de recrutamento ficam imunes. Graças à introdução das novas tecnologias na área dos recursos humanos, o recrutamento torna-se mais “cego”, o que pode torná-lo, também, mais “eficaz” e “diversificado”.
O que acontece já em algumas empresas em Portugal é que os currículos dos candidatos chegam e as organizações, por sua vez, eliminam alguns dados relativos ao género, idade, nacionalidade ou até formação académica e experiência profissional. Assim, os empregadores fazem a primeira seleção — sem condicionantes — centrada apenas no desempenho dos candidatos em testes online que lhes são apresentados.
Privilegiam-se competências como, por exemplo, o pensamento crítico, memória, solução de problemas, resolução matemática ou abordagem ao risco. Também a formação académica ou a experiência profissional ficam de fora, pelo menos numa primeira fase.
É uma tendência, mas Portugal ainda é muito “conservador”
“O atual contexto de transformação digital e de revolução das competências leva a que cada vez mais devamos ser prospetivos e ir para além da avaliação dessa experiência profissional”, até aqui encarada como um “excelente preditor do sucesso profissional do candidato numa nova empresa“, começa por explicar Pedro Amorim, manager director na Experis e corporate clients director na Manpower Group Portugal.
Se, antes, “os processos de recrutamento estavam muito focados em avaliar o passado profissional dos candidatos”, “a evolução do recrutamento é hoje uma realidade”, diz Pedro Amorim, acrescentando que a análise de comportamentos e habilidades deve ser vista com um indicador do futuro êxito profissional na função e empresa em questão.
João Gonçalves, manager da Michael Page, salienta que, embora seja uma tendência, este tipo de recrutamento ainda não está completamente implementado em Portugal. “Apesar de se verificar uma maior abertura, ainda somos conservadores em alguns temas”, refere.
Para a Robert Walters, estamos perante uma tendência nos recursos humanos que está a entrar em toda a Europa e, sobretudo, nos Estados Unidos. Mas, Portugal está um pouco atrasado nesta corrida. A empresa de recursos humanos ainda só pratica este tipo de recrutamento no Reino Unido, onde está o departamento de inovação. Aí são testadas cada uma das ferramentas que ajudam a realizar o recrutamento “cego” e aquelas que vão tendo sucesso são implementadas nos restantes mercados onde opera a Robert Walters.
Sem idade, género ou percurso. Fica apenas o “verdadeiro talento”
Para João Gonçalves, esta prática — que filtra determinadas informações consideradas potenciadores de enviesamento — é uma “clara aposta no que é o verdadeiro talento”. “Não nos vamos iludir e acreditar que, por vezes, quem está a recrutar não tem em conta o nome, idade, sexo ou outros aspetos, no momento inicial da triagem de currículos”, admite.
“É quase inevitável estar exposto a alguma forma de descriminação, o que é uma situação injusta para o candidato pois poderá não receber a oferta por razões que não estão sob o seu controlo”, continua o especialista em recrutamento. “Se um candidato trabalhou numa empresa de enorme prestígio, acabamos por supor que possui excelentes capacidades. Isto é um claro exemplo de preconceito, que impacta nas decisões de contratação”, dá como exemplo o manager da Michael Page.
No futuro, os processos de recrutamento terão cada vez mais elementos preditores de sucesso mais fortes do que a própria experiência profissional.
Pedro Amorim, da Manpower Group Portugal, está de acordo e considera que, no futuro, os processos de recrutamento terão cada vez mais “elementos preditores de sucesso mais fortes do que a própria experiência profissional”. “Isso vai ajudar-nos a identificar o talento de uma forma ainda mais eficaz e inclusiva”, afirma.
E, se há dúvidas sobre a eficácia deste tipo de recrutamento, Pedro Amorim responde: “Quando analisamos as habilidades certas e aplicamos de forma adequada os métodos mais idóneos, podemos obter previsões bastante precisas sobre a probabilidade de um indivíduo exibir altos níveis de desempenho numa determinada função”.
Por outro lado, lembra a Robert Walters, estes testes ainda têm bastantes falhas. “Na sua maioria não conseguem ser tão precisos como se pretendem, até porque muitos aspetos importantes para algumas funções passam por soft skills, que só se conseguem avaliar pessoalmente”, afirma François-Pierre Puech.
“Nem sempre nos podemos basear em testes para analisar se um candidato seria um bom encaixe. Por vezes, precisamos de saber nem que seja o percurso profissional ou o tipo de empresas e funções que exerceu”, acrescenta.
Para a empresa de recrutamento, é mais vantajoso não utilizar apenas testes, mas sim “currículos cegos”, que excluam a fotografia e todos os dados pessoais e mantenham a informação profissional e académica. “Nas grandes empresas tecnológicas, os processos de recrutamento já se processam muito assim. Vê-se um perfil de candidato sem fotografia, idade, raça ou género, apenas destacando skills e percurso académico e profissional”, refere o senior manager da Robert Walters.
“Em teoria, assim não poderia haver qualquer tipo de parcialidade ao escolher o candidato (pelo menos em termos de raça ou género), visto que a escolha passa pelo perfil e não por características pessoais”, acrescenta.
Quando a tecnologia fomenta a diversidade
Este tipo de recrutamento surge, assim, como uma maneira de remover o preconceito — mesmo que inconsciente — do processo de recrutamento. E as novas tecnologias, como a inteligência artificial (IA), podem contribuir para o aumento da transparência. “Cada vez mais, a ciência aplicada à gestão de talento — reforçada por tecnologias como a IA ou o data mining — é fiável e preditiva”, considera Pedro Amorim.
“Apoiando-nos em tecnologias baseadas em jogos e em vídeo, que avaliam os comportamentos, competências e habilidades, bem como no tratamento e analítica de dados, podemos construir processos de recrutamento a candidatos que reduzem o risco de enviesamento e aumentam a diversidade”, explica.
Ao excluir o percurso académico e profissional — dois elementos cuja ocultação é, talvez, a mais questionada — é possível chegar a perfis mais diversificados em termos de background. “No Reino Unido, é normal vermos profissionais em empresas, desde bancos a consultoras, cujo percurso académico é filosofia, literatura ou história, e não apenas gestão ou finanças”, conta François-Pierre Puech.
O resultado dessa fusão de percursos são “equipas mais inovadoras”. “Ao terem estudado outras matérias, as pessoas acabam por pensar de outra maneira e ser mais criativas, conseguindo chegar a melhores soluções em equipas compostas por pessoas de diferentes formações”, explica o senior manager da Robert Walters.
“Da mesma forma, equipas onde temos profissionais de géneros, idades, nacionalidades e raças diferentes, também temos equipas diversificadas e inovadoras, pois a experiência e mentalidade de cada uma das pessoas será diferente”, remata.
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