Carlos Ghosn estava em prisão domiciliária no Japão e proibido de contactar com a mulher. Ter-se-á escondido dentro de uma caixa de instrumentos musicais para embarcar num jato privado até ao Líbano.
Realidade? Ficção? Por vezes, uma mistura-se com a outra. Outras vezes, a realidade tem o dom de nos surpreender, conseguindo sobrepor-se ao que, à partida, poderíamos pensar que só seria possível ver num qualquer filme do grande ecrã. Neste caso, ainda não há planos (que se saiba) para um produção de Hollywood, mas daqui a algum tempo não será de estranhar se Carlos Ghosn, em tempos o “todo-poderoso” da indústria automóvel, virar estrela de cinema, contando a sua história de ascensão e queda, seguida de uma fuga louca à justiça japonesa.
Durante muitos anos foi a estrela do setor automóvel. Ganhou a reputação com a radical reestruturação implementada na Renault, levando a empresa francesa de volta aos lucros no final de 1990, cimentando-a quando “aterrou” na Nissan, já perto de 2000, como presidente executivo para liderar a recuperação do fabricante, com sede em Yokohama, no Japão. À Renault juntou a Nissan, tendo, durante anos, sido visto como a referência na indústria, também pela capacidade de antecipar o futuro do automóvel. A forte aposta na mobilidade elétrica veio a revelar-se certeira.
Viveu décadas de sucesso no setor, partilhando parte da sua viagem na liderança da Renault-Nissan com o português Carlos Tavares, seu braço-direito até o abandonar para liderar a PSA, empresa que, entretanto, comprou a Opel, tendo mais recentemente chegado a acordo para a fusão com a Fiat Chrysler. Ghosn vivia tempos áureos até que, em 2018 caiu nas malhas da justiça.
A 19 novembro de 2018, o antigo presidente da Renault-Nissan foi detido em Tóquio, no Japão. A suspeita? Fraude fiscal. Senhor de avultada fortuna, foi acusado de ter subestimado as suas próprias declarações de impostos, deixando por pagar muitos milhões de ienes por prémios milionários aprovados tanto pelos acionistas da Renault como da Nissan. Acabou por utilizar parte da fortuna para, 108 dias depois, pagar a fiança e sair da prisão. Mas em abril de 2019 foi novamente detido por crime de abuso de confiança, acusado pela Nissan.
Passados 19 dias, pagou uma nova causação de quatro milhões de euros, ficando em prisão domiciliária, proibido de contactar a esposa. E, obviamente, proibido de sair do país. Viveu assim até ao final do ano passado. A 30 de dezembro, fez o impensável, até para os seus advogados, e saiu do Japão.
Tudo pensado. A fuga na viragem do ano
Fugir? Ghosn não fugiu, mas libertou-se “da injustiça e da perseguição política” no Japão. “Deixei de ser refém de um sistema judicial japonês parcial onde prevalece a presunção de culpa”, afirmou Carlos Ghosn, confirmando as suspeitas de que se teria evadido do país onde este ano está (ou estava) previsto o início do seu julgamento.
Ghosn falou, mas já bem longe das autoridades nipónicas — e já depois de dadas as boas-vindas ao novo ano. Pouco se sabe como o fez, mas têm surgido alguns detalhes que ajudam a contar a história de como é que um outrora empresário de sucesso se tornou num fugitivo. De como de andar com motorista para todo o lado, acabou dentro de uma caixa de instrumentos musicais para sair de casa sem ser visto, rumando depois para o aeroporto onde evitou as companhias aéreas comerciais, recorrendo a um jato privado para levantar voo rumo a Istambul, na Turquia, e de seguida até ao Líbano.
“Houve especulações na imprensa de que minha esposa, Carole, e outros membros da minha família participaram na minha saída do Japão. Todas essas especulações são imprecisas e falsas”, disse Ghosn, numa nota enviada à comunicação social. O antigo presidente da Renault-Nissan afastou a família da fuga. Diz que organizou tudo sozinho. “Fui só eu quem organizou a minha saída”, rematou o ex-empresário, agora com 65 anos, que ter-se-á feito valer das múltiplas nacionalidades para orquestrar a fuga.
"Deixei de ser refém de um sistema judicial japonês parcial onde prevalece a presunção de culpa.”
De acordo com as autoridades libanesas, o empresário entrou no país de forma legal. Carlos Ghosn, que tem cidadania francesa, libanesa e brasileira, tinha inicialmente os seus quatro passaportes — dois franceses, um libanês e outro brasileiro — apreendidos pelas autoridades nipónicas, com uma das condições para a libertação sob fiança. No entanto, em maio de 2019, as condições foram alteradas e o presidente da Renault-Nissan conseguiu ficar com um dos dois passaportes franceses, sendo que terá sido com um destes que terá rumado ao Líbano. Este documento estaria numa mala na posse de Ghosn, mas as chaves estariam confiadas a um dos seus advogados, segundo a NHK.
Um fugitivo, sete detidos (por causa da fuga)
Ghosn puxa para si, e só para si, o mérito da fuga. Mas não terá sido bem assim. Pode não ter sido a família a ajudá-lo, mas houve algumas “mãos” amigas no processo, nomeadamente no aeroporto de onde levantou voo. Uma companhia de jatos particulares turca admitiu que um dos funcionários ajudou Carlos Ghosn a encenar a fuga do Japão. O trabalhador terá falsificado o registo dos passageiros com o intuito de alugar dois aviões ao ex-presidente da Renault-Nissan. A empresa já apresentou uma queixa criminal contra o trabalhador em causa, avança o Financial Times (acesso condicionado, conteúdo em inglês).
Por outro lado, o Ministério do Interior turco já abriu uma investigação para determinar as condições em que Ghosn transitou pela capital turca, tendo as autoridades detido, entretanto, sete pessoas suspeitas de auxílio ao fugitivo: quatro pilotos, um gerente de uma empresa de cargas e dois funcionários do aeroporto.
Protegido no Líbano (e em França também). Não pode é voltar ao Japão
Há detidos, mas Ghosn não é um deles. O antigo “todo-poderoso” da indústria automóvel está bem, no Líbano, país onde nasceram os pais — Carlos Ghosn nasceu no Brasil. Até já se terá encontrado com o presidente libanês, procurando garantir apoio na luta contra as autoridades nipónicas.
A Interpol emitiu um mandato de captura internacional, mas o Líbano não tem acordos de extradição. E França, país do qual tem não um, mas dois passaportes, também tem a mesma política, caso Ghosn decida mudar de ares. A garantia foi dada pela própria secretária de Estado da Economia francesa, que sublinha que o país “nunca extradita os seus nacionais”.
Ghosn escapou do Japão, estando agora, e até ver, a salvo das “garras” da justiça japonesa. Isto desde que se mantenha longe do raio de ação das autoridades nipónicas que desde o sucedido, têm optado por não fazer quaisquer comentários. Falta saber qual será o próximo passo do Japão.
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De todo-poderoso à detenção, até à fuga de Ghosn do Japão
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