Sócrates: “Tinha uma vida muito atarefada, não tinha tempo para falar com o Carlos Santos Silva”
O ex-PM foi novamente chamado por Ivo Rosa devido a um pagamento feito pelo primo em 2006, pelo levantamento pelo mesmo de 150 mil euros e pela adjudicação do TGV em 2009.
O primeiro dia do debate instrutório da Operação Marquês acabou por ser adiado depois do ex-Primeiro Ministro ter sido ouvido. Sócrates já tinha sido ouvido em novembro, à porta fechada. Esta audição – ao contrário de toda a instrução que decorreu nos últimos meses – foi à porta aberta. Mas agora o magistrado voltou a pedir que o principal arguido do processo – que conta com uma acusação de mais de 30 crimes contra si – falasse. José Sócrates aproveitou ainda para fazer mais declarações no final do seu interrogatório, depois de Ivo Rosa o ter autorizado.
O início do debate instrutório fica assim adiado para quinta-feira, às 14.00. Rosário Teixeira já avisou que vai precisar de duas horas para as suas alegações.
“Quanto a estadias e férias no ano de 2006 no Hotel Pine Cliffs, no Algarve. Havia aqui uma questão com o pagamento feito a 17 de abril de 2006 neste hotel com recurso a um cartão de crédito. A acusação diz que esse pagamento de 4.132 euros terá sido feito pelo arguido José Paulo Pinto de Sousa e em seu favor. Mas o seu primo quando esteve aqui a ser ouvido disse que não eram gastos dele”, questionou o magistrado.
O ex-primeiro-ministro esteve cerca de duas horas a responder ao magistrado, algumas vezes num tom mais ríspido, e depois a cinco questões do procurador do Ministério Público Rosário Teixeira, com quem se chegou a exaltar. “É preciso ser mesquinho”, afirmou Sócrates após uma pergunta de Rosário Teixeira.
José Sócrates garantiu – perante a plateia de jornalistas e com os advogados de defesas dos restantes arguidos da Operação Marquês presentes – que não estava no Algarve nessa altura. O magistrado questionou em concreto se o ex-chefe do executivo estaria no Algarve entre as datas de 9 de abril a 12 de maio de 2006. Sócrates usou vários prints de notícias dessas datas para provar que não estaria no Algarve mas sim em Bragança e também na Universidade da Beira Interior na Covilhã. Ambas em visitas oficiais. O arguido usou ainda agendas (físicas) – que trouxe consigo numa pasta – que terão sido suas enquanto primeiro-ministro para confirmar que não estava no Algarve nessas datas e ainda que não teve reuniões referidas pelo juiz.
Ivo Rosa questionou ainda Sócrates sobre os 150 mil euros levantados na Suíça no dia 4 de agosto de 2006, numa viagem feita pelo seu primo. “Recorda-se dessa viagem?”. Sócrates responde: “Não sei nada da vida financeira do meu primo, nem sabia onde ele estava, não tenho nenhuma memória disso”.
O juiz depois questionou ainda sobre reuniões mantidas no final de 2009 relativamente à adjudicação do TGV. “Não me lembro de reuniões relativas a relatórios intermédios. Os ministros decidiram adjudicar esse concurso, esse assunto era gerido pelos titulares da pasta”, explicou o arguido, acusado de mais de 30 crimes, entre eles o de corrupção passiva.
“Entre 4 novembro de 2009 e 10 dezembro 2009 – data do despacho de adjudicação ao consórcio para implementação do TGV, teve alguma reunião com o ministro das Obras Públicas ou das Finanças?”, questionou o magistrado. “Não, essa matéria era da competência dos respetivos ministros. Nunca intervim em procedimentos nenhuns!”, concluiu o socialista.“E nessa altura, a partir desse mesmo dia de 4 de novembro teve contacto com Carlos Santos Silva?”, questiona o juiz. “Isso passou-se há 11 anos… da memória que tenho, não falei. Eu raramente falava com ele porque eu tinha uma vida muito atarefada”, respondeu.
Ivo Rosa falou ainda de algumas visitas de Estado feitas a Angola e Argélia, nos dias 4 de abril até dia 7 de abril. “Teve alguma proximidade com políticos angolanos?”, pergunta Ivo Rosa. “Essa visita foi feita porque era feita por um ex-PM português que não conhecia nem Presidente, nem PM. Até essa data nunca tinha tido nenhum contacto com essas autoridades”, explicou o arguido. Em três anos, diz o magistrado, Sócrates deslocou-se três vezes a Angola. Reportando-se à Argélia, Ivo Rosa sublinhou que o arguido se deslocou duas vezes a esse país. Para perceber se havia aproximação pessoal do arguido com as autoridades políticas argelinas de forma a agilizar contactos com o Grupo Lena.
O magistrado falou ainda de um jantar que teve lugar no dia 24 de julho de 2008 com o Presidente Hugo Chávez, questionando se o arguido tinha conhecimento que António Barroca, do Grupo Lena, estava presente nesse jantar. “Essa cooperação económica tinha um núcleo que coordenava, que era o Secretário de Estado com pelouro do comércio internacional”, respondeu Sócrates.
O debate instrutório é a fase processual com intervenção do Ministério Público, arguido e assistente, que visa permitir uma discussão perante o juiz sobre a existência de indícios suficientes para os arguidos irem, ou não, a julgamento. O juiz de instrução criminal (JIC) no final da fase processual da instrução, pode decidir pela pronúncia (ida a julgamento) ou não pronúncia.
A Operação Marquês colocou José Sócrates sob investigação. O ex-primeiro ministro está acusado de três crimes de corrupção passiva de titular de cargo político, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documentos e três de fraude fiscal qualificada, um total de 38 crises.
Sócrates foi constituído arguido em 2014 e chegou a estar preso preventivamente durante dez meses e depois 42 dias em prisão domiciliária.
Entre outros pontos, a acusação sustenta que Sócrates recebeu cerca de 34 milhões de euros, entre 2006 e 2015, a troco de favorecimentos a interesses do ex-banqueiro Ricardo Salgado no Grupo Espírito Santos e para garantir a concessão de financiamento da Caixa Geral de Depósitos ao empreendimento Vale do Lobo, no Algarve, e ter acordado com o seu amigo Carlos Santos Silva negócios para favorecer empresas do grupo Lena através de obras do projeto Parque Escolar.
Por outro lado, segundo a acusação, no final de 2006, Carlos Santos Silva e Joaquim Barroca, administrador do Grupo Lena, aceitaram integrar o esquema financeiro para ocultar a origem e a propriedade dos fundos de Sócrates, tendo concordado em abrir contas para a passagem de fundos, junto do banco suíço UBS.
A Operação Marquês, com início a 19 de julho de 2013 , conta com 28 arguidos – 19 pessoas e nove empresas – e está relacionada, no total, com a prática de mais de uma centena e meia de crimes de natureza económico-financeira.
Foram ainda acusados, entre outros, o empresário Carlos Santos Silva (amigo e apontado como “testa de ferro” de Sócrates), o ex-administrador do Grupo Lena Joaquim Barroca, Zeinal Bava, ex-presidente executivo da PT, Armando Vara, antigo deputado e ministro e ex-administrador da CGD, Henrique Granadeiro (ex-gestor da PT), José Paulo Pinto de Sousa (primo de Sócrates) e Ricardo Salgado, ex-líder do BES.
O processo foi investigado durante mais de três anos, culminado com uma acusação com cerca de quatro mil páginas.
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