“A austeridade já cá está, à vista de toda a gente”, diz Daniel Bessa

Entre as medidas anunciadas pelo Executivo, o economista Daniel Bessa destaca, em entrevista ao ECO, a importância do lay-off simplificado e das moratórias do crédito bancário.

O economista, Daniel Bessa, defende que o “Governo está a responder bem a esta crise”, apesar de considerar que a austeridade já “está, à vista de toda a gente” e que Portugal só vai “regressar ao nível de 2019, na melhor das hipóteses, em 2022”. Em entrevista por escrito ao ECO considera as previsões do Executivo otimistas, por anteciparem a retoma já em 2021, e alerta que o Estado pode ser o “detonador da falência” de restaurantes e hotéis, caso não lhes seja dado mas tempo para fazer face às responsabilidades fiscais e de Segurança Social.

Em relação às medidas anunciados pelo Governo de António Costa, o professor universitário destaca a importância do lay-off simplificado e das moratórias do crédito bancário. Mas recorda que “Portugal que tem, consabidamente, uma das maiores dívidas públicas do mundo” e isso limita a sua capacidade de resposta. E se a União Europeia pode ser uma ajuda, o economista reconhece que lhe “custa” que “Portugal não consiga olhar para a União Europeia senão como ‘uma caixa de esmolas'”.

E deixa um alerta: convém “não nos fiarmos demasiado na Virgem, baixando a guarda em termos de prudência (para não termos, um dia destes, de voltar a bradar que “a culpa é da Senhora Merkel”, de forma ainda mais injusta do que na crise de 2011)”.

Disse numa numa entrevista recente que a nível económico “estamos pior que numa situação de guerra”. O cenário tem tendência a piorar? Quantos anos vamos demorar a recuperar?

A afirmação “estamos pior que numa situação de guerra”, que, de facto, proferi, referia-se ao período em que, por deliberação dos governos, sobretudo dos países mais desenvolvidos, a população tinha sido mandada para casa, paralisando o sistema de produção. Em tempos de guerra (que, felizmente, nunca vivi, pelo menos no sentido mais convencional do termo), certamente no meio do maior sofrimento e da maior destruição, os sistemas de produção não param, até porque é necessário não perder a guerra (que eu saiba, por exemplo, as refinarias não fecham, a menos que sejam atingidas por uma bomba).

Esse tempo passou e as economias iniciaram um caminho de recuperação (o “pico” da depressão terá ocorrido nos meses de março e de abril, embora, em termos anuais, o PIB continue a acumular queda, enquanto permanecer abaixo dos valores homólogos de 2019). De acordo com as previsões que parecem melhor fundamentadas, o tempo de recuperação variará de país para país: a China talvez ainda consiga, em 2020, um PIB superior ao de 2019, enquanto na União Europeia, Portugal incluído, não se espera que nenhum país consiga regressar ao nível de 2019 antes de, na melhor das hipóteses, 2022.

Na União Europeia, Portugal incluído, não se espera que nenhum país consiga regressar ao nível [do PIB] de 2019 antes de, na melhor das hipóteses, 2022.

O Governo prevê para este ano uma recessão de 6,9% e uma recuperação de 4,3% no próximo. Considera credíveis estas previsões?

As projeções de todas as entidades internacionais credíveis apontam, para Portugal, tanto em 2020 como em 2021, níveis de PIB mais baixos do que os que têm vindo a ser apontados pelo Governo.

O Governo está a responder bem a esta crise?

Sim, o Governo está a responder bem a esta crise. Faz o que pode e, quem faz o que pode, a mais não pode ser obrigado. Outros países, com outros meios (leia-se, com situações de finanças públicas menos deterioradas, nomeadamente a Alemanha), podem mais e, podendo mais, fazem muito mais ou, se preferir, respondem muito melhor a esta crise.

Das medidas anticrise, qual tem sido a mais eficaz para debelar a recessão? O lay-off simplificado? As linhas de crédito?

Entre as medidas que foram anunciadas (não sei se, em todos os casos, efetivamente adotadas), destaco a importância do lay-off simplificado e das moratórias do crédito bancário.

Algumas empresas vão ter de começar a pagar em julho as despesas que estiveram a adiar a nível fiscal e de Segurança Social. E ainda suportar o subsídio de férias. O Governo deveria dar mais tempo às empresas para evitar ruturas de tesouraria?

Dar mais tempo às empresas para evitar ruturas de tesouraria é sempre bom e, deste ponto de vista, quanto mais tempo, melhor (…) Como em tudo na vida, o desejável tem de ser calibrado com o possível. Talvez tenhamos de caminhar para uma rede de decisão mais fina: se me fala de um restaurante, ou de um hotel, será certamente necessário e imperativo que se conceda muito mais tempo, para não corrermos o risco de ser o Estado, ao pretender cobrar os impostos que lhe são devidos, o detonador da falência dessas empresas.

Se me fala de um restaurante, ou de um hotel, será certamente necessário e imperativo que se conceda muito mais tempo, para não corrermos o risco de ser o Estado, ao pretender cobrar os impostos que lhe são devidos, o detonador da falência dessas empresas.

O Ministério das Finanças prevê que a dívida pública possa chega aos 134,4% do PIB este ano. Temos capacidade financeira para aguentar esta crise?

Em matéria de endividamento, o mundo tem vindo a evidenciar uma capacidade de adaptação (diria uma “elasticidade”) notável, muito acima do que, poucos anos atrás, poderíamos antecipar. Até onde poderá chegar, não sei (prognósticos, como dizia “o meu capitão”, e um ícone de sensatez, só no fim do jogo). No que se refere a Portugal que tem, consabidamente, uma das maiores dívidas públicas do mundo, vale-nos, desta vez, o facto de a crise afetar todos os países (é simétrica, deste ponto de vista), além do apoio do BCE, convindo, no entanto, “não nos fiarmos demasiado na Virgem”, baixando a guarda em termos de prudência (para não termos, um dia destes, de voltar a bradar que “a culpa é da Senhora Merkel”, de forma ainda mais injusta do que na crise de 2011).

O primeiro-ministro convidou António Costa Silva para desenhar o Plano de Recuperação Económica. Que prioridades devem constar do plano?

Espero, apenas, que consiga resistir à adoção de uma agenda para nós “demasiado vanguardista”, ditada pelas prioridades da Comissão Europeia, esquecendo a realidade das empresas portuguesas, sobretudo das, direta ou indiretamente, mais exportadoras, de que depende por inteiro a sustentabilidade da economia portuguesa – que precisam de digitalizar, e de descarbonizar, certamente, mas sem ignorar o ponto de partida que é a realidade dos seus processos, e dos seus modelos de negócio, como eles são de facto (necessitando de inovação incremental mas não me parecendo, na maior parte dos casos, em condições de procederem a inovações disruptivas).

“Custa-me que Portugal não consiga olhar para a União Europeia senão como “uma caixa de esmolas”, diz Daniel Bessa.MÁRIO CRUZ/LUSA

 

O Conselho Europeu de 17/18 de julho poderá aprovar uma ajuda extra de 26,361 mil milhões para Portugal, valor que se soma ao Quadro Financeiro Plurianual. Isto chega para enfrentar o ciclo pós Covid?

Custa-me que, como um pedinte, Portugal não consiga olhar para a União Europeia senão como “uma caixa de esmolas” (reclamando sempre mais fundo perdido do que crédito, que não chega a ser uma verdadeira esmola). Quando a postura é esta, o dinheiro que nos chega da União Europeia nunca é suficiente, nem “para enfrentar o ciclo pós-Covid nem para coisa nenhuma”.

Vai ser possível evitar a austeridade num futuro próximo?

Quando o Produto Interno Bruto (PIB) mundial baixa, algures no mundo, alguém terá de absorver (consumir e investir) menos bens e serviços. É isso a austeridade – que também teremos de sofrer, a menos que pretendamos que outros ainda a sofram em maior medida, para nós, os portugueses, escaparmos incólumes. Não fora a ideologia, capaz de escamotear toda a realidade, e a pergunta poderia até ser considerada ofensiva: a austeridade já cá está, à vista de toda a gente, exceto, como sempre, de quem não quiser ver (e de quem, como projeto político, recuse a solidariedade, como única forma de, também internamente, partilhar a austeridade).

Os bancos, por causa das moratórias e do malparado que inevitavelmente vai aumentar, poderão vir a enfrentar dias difíceis no futuro?

Se há alguma coisa certa nesta crise, essa é uma delas. O governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, referiu-se-lhe como um “efeito precipício”. E o CEO do Santander Totta, Pedro Castro e Almeida, referiu-se-lhe como um “grande tsunami”. Não viverá muito quem não chegar a ter a oportunidade de ver.

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