Discricionariedade da Administração: falácia extinta ou em extinção?

  • Duarte Valido Viegas
  • 29 Dezembro 2020

O respeito pela competência e pelo fim (aspectos sempre vinculados) do acto administrativo, não esgotam o conjunto – assaz amplo – de factores a observar pela Administração.

A (velha) questão de saber se o exercício do poder discricionário da Administração Pública deve, ou não, considerar-se abrangido no universo de situações susceptíveis de sindicância judicial constitui, porventura, uma das mais intensas e controvertidas querelas desencadeadas no seio da doutrina e da jurisprudência administrativa nas últimas décadas. Não obstante, em virtude da celeuma que uma resposta negativa poderá suscitar (amiúde associada ao tema “quente” do desvio de poder), a matéria continua, hoje, a revestir enorme relevância teórica e, sobretudo, prática.

À querela subjaz a terminologia que muitos autores adoptaram para ensaiar uma dicotomia entre o – para nós, perigoso e, conceitualmente, errático – poder discricionário e o poder vinculado, baseando-se, para o efeito, nos (imperfeitos) artigos 71º, n.º 2 e 95.º, n.º 5, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

Ora, se é inegável que numas situações o legislador, prevendo que determinadas situações pudessem vir a ocorrer no universo fáctico, estabeleceu critérios que vinculam a Administração no exercício da sua actividade e noutras, malograda a sua perspicácia, o não conseguiu fazer expressamente, já não nos parece indiscutível – muito pelo contrário – que o mesmo tenha tido a intenção de conferir à Administração poderes discricionários tout court, ou seja, desprovidos de controlo por parte dos Tribunais. Pelo menos, para quem aceita pacificamente a ideia de que Portugal é um Estado de direito democrático, em que, por inerência, assiste aos cidadãos o direito de escrutinar judicialmente o exercício de poderes, máxime, públicos.

De resto, através de uma leitura cega do artigo 266.º, n.º 2 Constituição da República Portuguesa e do artigo 3.º Código de Procedimento Administrativo, facilmente se percebe que toda a actividade administrativa se encontra, invariavelmente, subordinada à lei (são estas duas normas que, grosso modo, encerram o afamado princípio da legalidade).

Acresce que, o respeito pela competência e pelo fim (aspectos sempre vinculados) do acto administrativo, não esgotam o conjunto – assaz amplo – de factores a observar pela Administração, estando esta obrigada a encontrar a solução que, no caso concreto, melhor se coadune com o interesse público e com os princípios que, além da legalidade, orientam, estruturalmente, a sua actividade, quais sejam, os princípios da igualdade, proporcionalidade, transparência, imparcialidade, justiça e razoabilidade.

Por isso, mesmo considerando que, em certos domínios, a escolha da solução a adoptar pela Administração num caso concreto não esteja condicionada pelo cumprimento de dispositivos legais, tal não significa que essa escolha seja discricionária e, muito menos, arbitrária. Do que se trata, isso sim, é de um poder-dever que, não obstante não radicar directamente da lei, se encontra juridicamente vinculado, sendo, concomitantemente, passível de controlo judicial.

Neste sentido, muito embora circunscrevendo o controlo do denominado “poder discricionário” apenas às hipóteses de erro de facto ostensivo e/ou de violações grosseiras dos princípios que regem o exercício da actividade administrativa, existe, entre nós, uma parte significativa da jurisprudência que tem entendido que tal poder é susceptível de controlo judicial.

Da nossa parte, apesar de considerarmos que o referido entendimento representa já um avanço assinalável na matéria, diremos que também as hipóteses de erro não palmar e/ou de violações leves se deveriam inscrever na mencionada corrente, por ser essa a solução que melhor se ajusta ao escopo, às normas e aos princípios que, no quadro de um Estado de direito democrático moderno, parametrizam a actividade administrativa.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

  • Duarte Valido Viegas
  • Associado da Miranda & Associados

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