Na defesa de Salgado, até o ’60 minutes’ e Tony Bennett tiveram honras de palco

Defesa de Salgado acusou o Ministério Público de desvalorizar a doença de Salgado e relembrou que um diagnóstico cabe aos médicos fazer e não a magistrados ou advogados.

Argumentos que giraram em torno da doença de Alzheimer e em que até o programa norte-americano ’60 minutes’ e Tony Bennett tiveram direito a destaque. Em mais de uma hora de alegações finais, a defesa de Ricardo Salgado, na voz do advogado Francisco Proença de Carvalho, pediu a absolvição do antigo presidente do BES no processo separado da Operação Marquês e criticou o Ministério Público (MP) por pedir uma pena não inferior a 10 anos para o ex-banqueiro. Ricardo Salgado está a ser julgado por três crimes de abuso de confiança e a decisão final será conhecida a 7 de março.

Numa tensão visível com o procurador Vítor Pinto, Francisco Proença de Carvalho — que partilha a defesa com Adriano Squillace — referiu o exemplo do cantor Tony Bennett, revelado no ’60 minutes’ exibido no sábado na Sic Notícias — que conseguiu fazer um concerto em que aparentava todas as suas faculdades, “mas a verdade é que dois dias depois já não se lembrava desse mesmo concerto”, disse Proença de Carvalho. Eu não sou médico, sou advogado e nós não podemos aferir o grau de Alzheimer só pelo contacto, a olho”, disse o advogado levantando-se e pondo-se ao lado do seu cliente, visivelmente desorientado. “Há acórdãos que dizem que esta análise tem de ser feita tecnicamente, por médicos especializados e não por procuradores e juízes”, concluindo que “nem a defesa nem o Ministério Público têm conhecimentos para aferir se o diagnóstico é correto ou não”, referindo-se a um acórdão do Tribunal de Viseu que condenou um arguido de menos de 60 anos com a mesma doença a pena de prisão mas suspensa.

Que é, aliás, a tónica da defesa do ex-homem forte do Grupo Espírito Santo. Porque, apesar de pedir a absolvição, o advogado frisou que, caso o seu cliente seja condenado, que seja a uma pena de prisão suspensa. “Aí não cedemos”. E disse ainda, em aviso ao procurador do MP, que este ignorou a doença do arguido.

Mas vamos por partes. A equipa de defesa começou por explicar porque é que este processo nem deveria estar já, publicamente, associado ao da Operação Marquês. “Continua a falar-se publicamente deste processo como o julgamento da Operação Marquês. No entanto, este julgamento nada tem de Operação Marquês!”. E desenterrou o desabafo informal do juiz deste mesmo processo, no início do julgamento, de que esta separação de processos, feita por Ivo Rosa, “é altamente questionável”. E cuja narrativa acusatória se tornou “totalmente “coxa” e “ilógica”, pois a sua coerência mínima dependia de factos que constavam da acusação da Operação Marquês, que envolve também o ex-primeiro ministro, José Sócrates. Mas cujo julgamento ‘separado’ ainda não começou.

Proença de Carvalho fez questão de dizer que o que está, agora, a ser julgado são três crimes de abuso de confiança”e não todo o processo Marquês” que se tornou um dos mais mediáticos da Justiça portuguesa mas em que, na fase de instrução, acabou por deixar cair 18 dos 22 crimes de que Salgado estava acusado. “Não se está a julgar os motivos que levaram à trágica resolução do BES e os seus lesados (infelizmente); não se está a julgar o papel do meu cliente na Economia e na sociedade portuguesa; não se está a julgar o que se diz na praça pública e tão-pouco se está a julgar o objeto central do Marquês”, explicou o advogado.

Passando posteriormente ao que chamou de “angústias” e “dúvidas”, a defesa explicou qual era então a grande dúvida : “consegue e quer o sistema de Justiça resistir à pressão mediática e pública que existe em torno da figura do Dr. Ricardo Salgado?”, entrando depois no assunto que foi várias vezes trazido à baila e que gerou tensão entre os advogados e o Ministério Público. “Ao pedir a prisão efetiva de uma pessoa com a patologia comprovada do doutor Ricardo Salgado, [o MP] pede algo que vai contra a decência e o humanismo”, disse, acrescentando: “O MP fingiu que não sabe da condição do doutor Ricardo Salgado, desconsiderando tudo o que está na jurisprudência e no humanismo do Estado de Direito português”.

E admitiu que receia que o que prevalecerá seja “uma possível necessidade de se dar uma satisfação a alguma opinião pública (de tablóide ou de rede social), dando assim uma aparência de que a Justiça funciona e é eficaz? Dando a aparência que assim se está a defender o sistema…
Transmitindo uma ideia de que todo o esforço da Operação Marquês (um autêntico fiasco do MP) valeu a pena!?”, sublinhou o advogado, visivelmente indignado. Relembrando ainda a rapidez com que a marcação do julgamento se realizou, “com uma velocidade pouco normal no contexto dos tribunais portugueses ao ponto de o julgamento ter até estado perto de se iniciar ainda antes de decorrido o prazo para apresentação da contestação pelo arguido”.

O advogado acusou ainda o tribunal de, “pelo menos aparentemente”, ter desvalorizado a doença de Alzheimer de um arguido com 77 anos “comparando-a a um normal declínio cognitivo pelo decurso da idade”.

A defesa de Ricardo Salgado alegou ainda que “dificilmente se pode encontrar sujeito a tanta pressão mediática e pressão judicial durante quase 10 anos, e que aos 70 anos viu a vida virada do avesso de um dia para o outro. Mais tarde ou mais cedo a saúde iria ser afetada”.

Os advogados do ex-banqueiro alegam que o diagnóstico de Alzheimer foi feito por um “reputado médico” e que tem elevado grau de certeza. Argumentam, também, que as faculdades cognitivas do seu cliente se agravaram após o último relatório, o que limita a capacidade de prestar declarações.

“Nada custou mais a esta defesa do que ter de admitir ao tribunal e opinião pública o diagnóstico médico de Ricardo Salgado, e nada custa mais do que ver a forma desumana com que algumas pessoas se referem a situação de saúde de Ricardo Salgado”, afirmou um dos advogados em tribunal.

Apontando ainda o contexto em que vivemos, “num tempo em que se fala tanto de ciência e de confiarmos na ciência”, referindo-se à pandemia, “não deixa de impressionar a forma simplista como o MP fala de temas médicos. O que sabe o MP da doença de Alzheimer? O que sabe o MP sobre os efeitos da mesma? O que sabe o MP sobre o grau de gravidade da doença do Arguido? O que sabemos nós todos sobre isso!? Nada!”

Continuando nas críticas ao MP, a defesa acusou o mesmo de assentar as suas alegações nas suas opiniões e deduções. Explicando que já a defesa, na sua opinião, assentou a sua argumentação em provas diretas: centenas de documentos juntos com a contestação, depoimentos de testemunhas com intervenção direta nos factos, relatórios médicos. Concretizando com a prova testemunhal, considerou “paradigmático” o depoimento da testemunha Jean-Luc Schneider que teve “intervenção em todos os factos centrais em causa no processo e que, no essencial, aqui confirmou o alegado na contestação, ou seja, a tese da defesa no que respeita à explicação do contexto e da motivação das operações em causa no processo. Pessoa que, obviamente, deveria ter sido inquirida na fase de Inquérito, mas em torno da qual o MP preferiu patrocinar uma espécie de novela como se fosse um protagonista quase mitológico… poderia nem existir na realidade. Onde está o Schneider chegou a perguntar-se em algumas reportagens? Pois bem… O Sr. Schneider existe, esteve aqui e não foi nada difícil ao Tribunal conseguir a sua inquirição”, sublinhou.

Concluindo, Proença de Carvalho disse: “Em caso de condenação do arguido, o Tribunal tem que ser consequente e aplicar a lei. E aplicar a lei significa que qualquer eventual pena de prisão terá que ser suspensa!”. Porque, “a doença de Alzheimer constitui, indubitavelmente, uma anomalia psíquica. Com o conhecimento científico atual, uma anomalia psíquica irreversível e´que, infelizmente, se irá agravar com o tempo”.

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