Há cada vez mais mulheres na ciência. Mas (ainda) são poucas as que escalam na hierarquia
Só daqui a uma geração é que a investigadora Helena Machado estima que possa existir paridade de género nos cargos de liderança na ciência.
Há cada vez mais mulheres cientistas e engenheiras em Portugal e, em 2020, havia até já mais mulheres a trabalharem nestas áreas (52%) do que homens. Mas há sempre um reverso da medalha: poucas são as mulheres em lugares de topo de hierarquia e de decisão em contexto de ciência e tecnologia. A paridade de género a este nível pode ainda demorar uma geração, estima Helena Machado, investigadora e professora catedrática do Instituto de Ciências Sociais.
“Suponho que daqui a uma geração possa haver paridade de género a esse nível, mas, por ora, essa igualdade não se verifica. Por motivos culturais e sociais, as mulheres são encaradas como muito trabalhadoras e capazes de desempenharem multifunções e os homens são perspetivados como ‘líderes natos’ e ‘estrategas'”, começa por dizer Helena Machado, que recebeu recentemente o Prémio de Mérito Científico 2022, à Pessoas.
Os números globais até são animadores. No ano passado Portugal contava, não só com 52% de mulheres cientistas e engenheiras em 2020, como era mesmo uma referência a nível entre os Estados-membros da União Europeia (UE), ao lado da Lituânia e da Dinamarca e bem distante dos 30% verificados na Finlândia e dos 31% apurados na Hungria, segundo dados do Eurostat.
Além disso, a nível regional, os dados mostram que é maior a proporção de cientistas e engenheiras em 11 regiões da UE, surgindo Portugal, uma vez mais, bem posicionado. Madeira (56%) e Portugal Continental (51%) surgem ao lado das quatro regiões de Espanha (noroeste e centro, com 52%; Ilhas Canárias e nordeste, com 51%), do norte e sudeste da Bulgária, leste da Polónia (ambos 57%), norte da Suécia (56%), assim como da Lituânia e Dinamarca (ambos 52%).
Suponho que daqui a uma geração possa haver paridade de género a esse nível [nos cargos de liderança], mas, por ora, essa igualdade não se verifica.
Outros dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) corroboram estes resultados. O número de portuguesas que estudam ciências, tecnologia, engenharia ou matemática é superior ao de homens nas mesmas áreas. Na área da biologia as mulheres são mesmo a esmagadora maioria, dá conta a OCDE.
Homens na chefia de laboratórios. Mulheres em tarefas de menor visibilidade, mas intensas em esforço
A realidade é outra quando olhamos para a liderança. Vários estudos mostram que a paridade de género nesta indústria está ainda longe. As cadeiras do topo — ou, neste caso, à frente dos laboratórios — continuam a estar homens. As mulheres ficam encarregues de tarefas de menor visibilidade.
“É mais comum que a chefia de laboratórios ou de direção de centros de investigação sejam funções atribuídas aos homens, enquanto para as mulheres ficam as tarefas com menor visibilidade pública, mas mais intensivas em termos de esforço e tempo quotidianos”, afirma a investigadora. “Não tenho qualquer dúvida em afirmar que enquanto os homens ‘brilham’, apresentando-se em posições de charneira ao nível de coordenação e tomada de decisão, as mulheres estão envolvidas em atividades secundarizadas.”
“Prevalecem estereótipos que penalizam o acesso das mulheres a lugares de topo em ciência e tecnologia. Para a reprodução desses preconceitos contribuímos todos: mulheres e homens. Enquanto uma mulher assertiva e que revela uma personalidade orientada para a liderança é classificada como ‘mandona’ e ‘demasiado exigente’, um homem que tenha as mesmas características tende a ser valorizado e elogiado por ser capaz de tomar decisões e de liderar”, considera Helena Machado.
Cláudia Quaresma, professora da Nova School of Science and Technology | FCT Nova, partilha da mesma visão. “É com grande orgulho que vejo que Portugal tem feito um caminho muito positivo, neste sentido e que existe uma maior paridade de géneros nas áreas da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática”, diz.
Os números são “animadores”, mas “revelam que as mulheres continuam a estar sub-representadas nestas áreas e a ter menos oportunidades do que os homens”, considera a investigadora da FCT Nova. “Quando observamos os números das mulheres na ciência em funções que pressupõem hierarquia, estes ainda são manifestamente reduzidos. O que se reflete nesta matéria é que temos ainda um longo caminho a percorrer e que as mulheres, na ciência, enfrentam maiores desafios e preconceitos, sobretudo ao nível das empresas.”
Para reverter estas estatísticas que evidenciam a desigualdade de género no setor, Cláudia Quaresma mostra-se a favor da implementação de quotas. “Considero de extrema importância alterar o paradigma, nomeadamente na implementação de políticas que promovam a igualdade de oportunidades, sobretudo ao nível da gestão. É por essa razão que estou de acordo com a implementação de quotas.”
“Em Portugal, devia existir uma reflexão aprofundada sobre o ensino”
Mas, ainda antes das quotas, há um importante trabalho que é preciso fazer no sentido de promover as áreas da ciência, da tecnologia, da engenharia e da matemática. Nesse sentido, “não posso deixar de realçar o importante papel que a Ciência Viva tem assumido na divulgação do papel das mulheres na ciência”, diz Cláudia Quaresma.
“Os dados têm vindo a aumentar, por exemplo em Portugal as alunas a estudar ciências e tecnologia são cerca de 57%, o dobro do Japão. Porém, apesar de todo o esforço, ainda poderemos alcançar resultados mais expressivos, sobretudo na divulgação da tecnologia. Este caminho poderá oferecer mais oportunidades para que o seu conhecimento e exploração, de forma prática e divertida, despertem um maior sentido de curiosidade”, considera.
O que se reflete nesta matéria é que temos ainda um longo caminho a percorrer e que as mulheres, na ciência, enfrentam maiores desafios e preconceitos, sobretudo ao nível das empresas.
Além do trabalho que a Ciência Viva tem feito, a professora da Nova FCT defende que deveria existir uma maior sinergia entre as escolas secundárias e as universidades.
Um estudo da Microsoft, que contou com a participação de 11.500 mulheres com idades entre os 11 e os 30 anos, de 12 países europeus, traçou algumas conclusões que vão ao encontro das preocupações das investigadoras. Uma delas é que a maior parte das raparigas ficou interessada nas STEM (science, technology, engineering and mathematics) por volta dos 11 anos, mas esse interesse decresceu por volta dos 15 anos. Além disso, 60% das inquiridas admitiram sentir mais confiança em seguir uma carreira na área, caso soubessem que homens e mulheres trabalhavam igualmente nestas profissões.
“Até ao início da adolescência, as clivagens de género parecem estar mais atenuadas, embora as diferenças de socialização entre meninas e meninos se façam notar desde o berço. Desde a mais tenra idade que, muitas vezes de modo inconsciente, preparamos as meninas para serem delicadas, emotivas e cuidadoras; e os meninos para serem fortes, racionais e autónomos”, explica Helena Machado.
“Um fator que desencadeia o afastamento em relação às áreas STEM é o insucesso na matemática. Embora esse insucesso tanto atinja, em termos de números reais, as meninas como os meninos, no plano social e simbólico, os impactos são diferenciados. As meninas tendem a ser mais perfeccionistas e os meninos mais tolerantes e mais propensos a arriscar. A isto vem juntar-se o efeito da socialização diferenciada em termos de género: as áreas das humanidades são encaradas como mais femininas (porque mais próximas das emoções e de profissões de prestação de cuidados a outros) e as ciências, tecnologias, engenharias e matemáticas são vistas como mais masculinas (porque mais próximas da racionalidade que tendemos a associar mais facilmente aos homens).”
Para a docente do Instituto de Ciências Sociais é “preocupante” o fator de desmotivação e desinteresse que é desencadeado pela persistência de dificuldades de aprendizagem da matemática. “Em Portugal, devia existir uma reflexão aprofundada sobre o ensino. Quando verificamos que as nossas crianças e adolescentes são dos estudantes que mais tempo passam em sala de aula, e mesmo assim, o nosso desempenho é modesto, tanto na matemática como no domínio de competência de leitura e compreensão de texto, temos que avaliar o que se está a passar”, defende.
“Estou ciente que as condições socioeconómicas relativamente desfavoráveis e o ainda baixo nível de literacia e escolaridade da população em geral são fatores muito fortes, que continuam a refletir-se negativamente em termos de indicadores internacionais do desempenho dos estudantes portugueses. Mas, ainda assim, estou convencida que temos que alterar o paradigma de ensino, para motivarmos mais os nossos estudantes e as respetivas famílias”, alerta a investigadora e professora universitária.
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