O ex-presidente do conselho de auditoria do Banco de Portugal diz que foram cometidos "erros muito graves" nos mandatos de Carlos Costa, mas faz uma "avaliação mista". Centeno? "Muitas expectativas."
Ex-presidente do conselho de auditoria do Banco de Portugal, João Costa Pinto considera que se cometeram “erros muito graves” durante os mandatos de Carlos Costa, nomeadamente na resolução do BES. Primeiro, porque assumiu a responsabilidade de encontrar, sozinho, uma solução para o banco, sem contar com o apoio político. Depois, porque errou na venda do Novo Banco. Ainda assim, faz uma “avaliação mista” do desempenho de Carlos Costa na última década enquanto líder do supervisor da banca.
Em entrevista ao ECO, Costa Pinto considera ainda que Mário Centeno reúne todas as condições para ser um bom governador do Banco de Portugal: “Não tenho dúvidas, tenho é expectativas muito positivas quanto à atuação de Mário Centeno”. Conselhos? “Coragem para atuar em situações de grande complexidade e correr riscos.”
Carlos Costa está em fim de mandato. Ficará na memória a resolução do BES. Globalmente, como avalia os dois mandatos à frente do Banco de Portugal?
Tenho de fazer uma declaração de interesses: tenho uma ligação muito grande ao Banco de Portugal. Costumo dizer que fui tudo no Banco de Portugal, desde estagiário a vice-governador. Só me faltou ser contínuo e governador. Em relação a Carlos Costa, conheço-o há dezenas de anos e sempre tive com ele uma relação de amizade. Dito isto, acho que foram cometidos erros muito graves.
Falamos da resolução do BES?
Até poderei aceitar que foram boas as intenções. Mas quando se diz que o Banco de Portugal decidiu resolver, não foi o Banco de Portugal que decidiu. O colapso do Grupo Espírito Santo, pela sua dimensão e pelas suas implicações, era à partida uma questão com implicações políticas. O Governo da altura, por opções de natureza ideológica e por cálculo político, decidiu afastar-se de todo o processo do colapso do GES. E, no meio dessa atitude, não considerou suficientemente importante o peso do BES/Banco enquanto financiador da economia, em particular, de milhares e milhares de pequenas empresas, e passou a responsabilidade de um destino para o BES para o Banco de Portugal.
O Banco de Portugal, na fronteira da sua missão estatutária, e aqui o meu primeiro julgamento é que fez mal, aceitou assumir de corpo inteiro a responsabilidade de procurar uma solução para o BES, sem um apoio político ativo. Isto acontece num momento particularmente difícil e complexo, porque é o momento em que a legislação europeia que enquadra toda a atividade bancária estava a mudar, incluindo na implantação de uma união bancária em que um dos pilares era a resolução. Só que esse pilar estava manco, porque a resolução tem duas componentes: o quadro jurídico aplicável à resolução e a componente financeira, que é um fundo de resolução que devia estar operacional a nível europeu, e não estava. Consequências: as decisões de resolver ou não resolver um banco passavam por Bruxelas, mas quem tinha o custo era o país. Isto é inaceitável e nenhum país aceitou como nós.
Por outro lado, quando o Governo português se afastou, enfraqueceu a nossa posição negocial para com a Comissão Europeia e a DG Comp e os tecnocratas europeus que controlavam todo este processo. Porquê? Se o caso do BES não era suficientemente importante para envolver ativamente o Governo de um país, é porque o Governo não considerava suficientemente importante e, portanto, a capacidade negocial reduzia-se. Como diz o povo, tudo o que começa mal tarde ou nunca se endireita. E depois o Banco de Portugal atira-se a um processo de venda, que é outra das coisas de que eu sou crítico.
Os ingleses tiveram dois problemas que, em termos relativos e de dimensão, eram tão grandes como o BES: foi o Royal Bank of Scotland e o Lloyds. O que é que eles fizeram? Aqui há muita gente que, com algum cinismo ou hipocrisia, põe as coisas como: “Aqui a alternativa era nacionalizar?” Mas isso era mau? Não. Porque é que a alternativa não era como os ingleses fizeram no Lloyds? É um avançar, tomar conta, estabilizar e vender. Não é fazer uma fire sale, uma venda apressada, uma venda forçada. Quando se tenta vender um ativo de forma forçada, ele desvaloriza.
Conheço Carlos Costa há dezenas de anos e sempre tive com ele uma relação de amizade. Dito isto, acho que foram cometidos erros muito graves.
Foi o que aconteceu com o Novo Banco?
As condições em que o Novo Banco é vendido são inconcebíveis. Fui daqueles que chamei a atenção desde o início. Isto é um mecanismo perverso.
Estamos a falar do mecanismo de capital contingente.
A Lone Star pagou 750 milhões de euros, que meteu lá, e ficou com 75%. Nós propusemos pôr 3,89 mil milhões de euros em cima de quatro mil milhões que já lá tínhamos metido e ficámos com 25%. Isto é um absurdo. Mas pior: eu ainda admito que o objetivo do Banco de Portugal, que é louvável, seja de preservar a estabilidade do sistema financeiro, em condições muito difíceis, em que o país estava ameaçado de bancarrota. Mas não venham dizer que não havia alternativas. Quando se diz que não havia outros compradores, isto não é verdade. Não havia era compradores para o caderno de encargos inicial. Nas condições em que foi vendido, não tenho dúvidas de que não surgiam nem um nem dois compradores, porque qualquer potencial comprador ficaria encantado por estar no lugar da Lone Star.
O que houve foi uma pressa, o que eu não entendo. O Governo e Portugal têm de explicar muito bem à Europa porque é que, no contexto atual, com as dificuldades que está a enfrentar, está disponível para meter milhares de milhões de euros numa empresa, mesmo que ela tenha a importância estratégica da TAP. Tem de explicar muito bem o que quer fazer com a Efacec.
O Governo não negociou o contrato de venda da TAP quando lá chegou? Então porque é que não foi feita a mesma coisa com uma situação que é altamente prejudicial para os interesses dos contribuintes portugueses como o Novo Banco?
Na sua opinião, o Novo Banco vai pedir o que falta ao Fundo de Resolução ao abrigo do mecanismo de capital contingente?
Não vejo porque é que não o há de fazer. É a tal perversidade do mecanismo. Se há uma garantia que pode mobilizar capital, a tendência natural é limpar, limpar e limpar o balanço.
Voltando ao início, globalmente, como avalia os dois mandatos de Carlos Costa à frente do Banco de Portugal?
Durante mais de três anos fui presidente do conselho de auditoria do Banco de Portugal e pude acompanhar os esforços de reorganização interna do banco. Carlos Costa esteve dez anos à frente do Banco de Portugal, durante um dos períodos mais críticos e mais longos de dificuldade de todo o sistema financeiro português. Ele encetou um movimento de reorganização de áreas críticas, como a área de supervisão, tanto prudencial como comportamental, de toda a área ligada ao acompanhamento, a chamada área sancionatória do Banco de Portugal. Criou departamentos, modernizou outros, atraiu técnicos jovens de elevadas qualificações. Todos estes aspetos foram muito positivos.
Mas há aspetos da atuação do Banco de Portugal durante o consulado de Carlos Costa que têm de ser avaliados não pelas intenções, que eram certamente todas elas louváveis, mas pelos resultados. Na intervenção sobre os bancos, acho que o Banco de Portugal se atrasou porque, em determinada altura, sabíamos que ia entrar em vigor todo um quadro jurídico-regulamentar novo com a união bancária, com a submissão da atividade bancária a um novo tipo de regulamentação muito mais exigente, e em que, sobretudo, algumas rédeas da decisão iam deixar de estar nas mãos do Banco de Portugal isoladamente. Enquanto os espanhóis atuaram antes que isso acontecesse e tiveram decisões no sentido de atenuar e, como resultado, a banca espanhola passou com muito menos consequências negativas todo o período da crise financeira, nós atrasamo-nos. Houve uma atitude mais reativa do que proativa em muitos momentos.
É conhecido que, a pedido do próprio governador, eu presidi a uma comissão independente que avaliou a atuação do Banco de Portugal relativamente ao BES e ao Grupo Espírito Santo e essa comissão detetou problemas e falhas sistemáticas, ao longo do tempo, já antes de Carlos Costa ter entrado no Banco de Portugal. Acho — e isso foi uma pena — que o Banco de Portugal não foi capaz de tirar todas as ilações da avaliação que foi feita.
Chegou-se à conclusão de que houve uma “falta grave” da parte do governador?
Seria o último a avaliar isso. A comissão teve conclusões em que, em muitos momentos, muitas vezes por omissão, outras vezes por entendimento do enquadramento jurídico-regulamentar que à comissão pareceu demasiado restritivo, não foram tomadas as medidas que deviam ter sido tomadas. Agora, a classificação desse tipo de falhas, isso não ia fazer, nem a comissão a faz dessa maneira. Tenho, destes dez anos, uma avaliação mista: penso que o Banco de Portugal se reorganizou, aumentou, do ponto de vista técnico, qualitativamente, a sua capacidade de intervenção. Na linha, aliás, do que já vinha de trás. Sobre esse aspeto, houve uma atuação e evolução positiva.
Porém, considero que houve decisões que o Banco de Portugal tomou que, infelizmente, marcaram de forma menos positiva a atuação, não do governador, porque acho que problemas desta complexidade não devem ser personalizadas numa pessoa, apesar do poder e do estatuto do governador, mas de toda a instituição. O caso do BES/Novo Banco foi um caso, o Banif é efetivamente outro caso e há problemas ainda por resolver, que não têm apenas a ver com o Banco de Portugal.
É que nós não aprendemos. Há a situação do grupo Montepio em que os supervisores portugueses — e não me estou a referir especificamente ao supervisor bancário — e também a componente política que enquadra isso tudo e que teimam em não ter a coragem de resolver os problemas e os arrastem. São problemas que, pela sua natureza e complexidade, nunca se resolvem, só se agravam.
Tenho, destes dez anos, uma avaliação mista: penso que o Banco de Portugal se reorganizou, aumentou, do ponto de vista técnico, qualitativamente a sua capacidade de intervenção. Na linha, aliás, do que já vinha de trás. Sobre esse aspeto, houve uma atuação e evolução positiva. (…) Porém, considero que houve decisões que o Banco de Portugal tomou que, infelizmente, marcaram de forma menos positiva a atuação.
Mário Centeno tem competências para o cargo de governador do Banco de Portugal?
Completamente. Um ministro das Finanças, com a preparação de base que ele já tinha anteriormente, sendo ainda presidente do Eurogrupo, o que lhe permitiu desenvolver uma rede de contactos que lhe podem ser preciosos enquanto governador do Banco de Portugal, nomeadamente dentro do Banco Central Europeu, tem todas as competências. Temos de ter presente que, enquanto presidente do Eurogrupo, Centeno era um primus interpares que dialogava diretamente com o topo do BCE. Isso deixa marcas. E, portanto, está numa posição excelente para ser um bom governador na defesa dos interesses próprios da economia portuguesa, do sistema financeiro português, e do Banco de Portugal.
E condições? Não vê nenhum tipo de conflito de interesses?
Absolutamente nenhum. Porque carga de água é que havia de haver um conflito de interesses no tipo de responsabilidades e de funções que o governador tem?
Por exemplo, foi Mário Centeno quem avançou com a reforma da supervisão financeira, que teriam implicações nas competências do Banco de Portugal, reforma essa que não foi concluída.
Pelo contrário, é ótimo que se inicie as funções de governador com uma ideia do que deve ser a supervisão. O grande problema é quando são nomeadas pessoas que vão para um cargo desta responsabilidade aprender on job. Com um risco adicional: eu sou alguém do Banco de Portugal que cresceu com a cultura interna do Banco de Portugal. E a cultura interna do Banco de Portugal é fortíssima, como reflexo da qualidade técnica e operacional da estrutura do Banco de Portugal. Alguém que chegue ao Governo do Banco de Portugal sem uma capacidade própria, sem ideias próprias, vai aprender submerso numa estrutura com uma cultura fortíssima que vai condicionar toda a sua atuação. Neste caso, não tenho dúvidas, tenho é expectativas muito positivas quanto à atuação de Mário Centeno.
Mário Centeno está numa posição excelente para ser um bom governador na defesa dos interesses próprios da economia portuguesa, do sistema financeiro português, e do Banco de Portugal.
Tendo em conta a sua experiência, tem algum conselho para o próximo governador?
Considerando eu que Mário Centeno tem as competências e experiência para ser governador, a única coisa que lhe desejo é coragem. Coragem. Muitas vezes para atuar em situações de grande complexidade e correr riscos.
Um dos riscos imediatos é este, da pandemia. Que impacto terá na banca?
Estou particularmente preocupado porque estes surtos pandémicos que estão a prolongar a recessão vão ter consequências sobre o mercado bancário e os bancos portugueses. Vão travar o esforço que estava a ser feito no sentido da consolidação, da modernização e da racionalização. Mas, por outro lado, estou convencido de que vai acelerar mudanças, vai acelerar concentrações, ganhos de dimensão e avanços tecnológicos.
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Costa Pinto: “A única coisa que desejo a Centeno é coragem. Coragem para atuar em situações complexas e correr riscos”
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