Em entrevista à Advocatus, o sócio da Cuatrecasas questiona a falta de eficiência do Ministério Público, critica os juízes do "Ticão" e conta o que mudaria no sistema judicial caso fosse PGR.
Paulo de Sá e Cunha é um dos advogados penalistas mais conhecidos em Portugal. Sócio da Cuatrecasas, já passou pela Operação Marquês, processos Vistos Gold e ainda na mais recuada Operação Furacão. Em entrevista à Advocatus, defende que há juízes de instrução sem vocação, elogia e critica simultaneamente Joana Marques Vidal e considera que o segredo de justiça já não existe. Elege ainda o ex-ministro da Cultura Manuel Maria Carrilho como um dos seus clientes “mais difíceis”, que sexta-feira passada foi absolvido novamente do crime de violência doméstica contra a ex-mulher Bárbara Guimarães.
Qual a diferença entre a advocacia que se praticava há dez anos e a que se pratica agora?
Se calhar preferia recuar um bocadinho no tempo e iria aos últimos vinte anos ou até, se quiser, aos últimos trinta. Há grandes alterações no panorama legislativo, que se traduzem, sobretudo, numa neocriminalização, isto é, num aumento do número de crimes e na fragmentação de uma série de crimes.
Dou-lhe o exemplo do crime de corrupção, que foi um crime que se multiplicou numa série de tipos penais que não existiam. O celebérrimo recebimento indevido de vantagens, de que se falou há pouco tempo, a propósito da história das viagens de membros do governo, financiadas pela GALP. É um exemplo daquilo que até março de 2011 não era crime e passou a ser. Portanto, há uma ampliação que eu acho excessiva e contraproducente do número de crimes.
Fazendo a ponte com outro tema da atualidade: o tema dos Vistos Gold…
Precisamente… O Juiz Presidente, quando leu o acórdão, tocou numa questão fundamental, que é a questão da intervenção mínima do direito penal. Há comportamentos que são eticamente censuráveis, são politicamente censuráveis, se quiser. Foi isso que ele disse, mas não são crime. Portanto há uma ideia de adequação social dos comportamentos, e esses comportamentos têm que ter uma gravidade mínima para constituírem crime.
Agora, voltando à pergunta anterior, o que muda essencialmente os contornos da advocacia penal são os crimes de fraude na obtenção de subsídio que são crimes dos anos 90, final dos anos 90, início de 2000, quando nós começamos a ter as infrações penais, praticadas por empresários que tinham formação profissional financiada pelo Fundo Social Europeu, a ser investigadas e a serem alvo de acusações. E isso é que marca, se quiser, o início do direito penal económico. Portanto, quando nós começamos a ter uma certa apetência das grandes sociedades pelo direito penal é precisamente quando este começa a chegar às empresas e aos empresários. Bom, mas depois há outro marco importantíssimo, que nós ainda não assimilámos bem na nossa prática judiciária, que é a responsabilidade penal das pessoas coletivas.
A partir de 2007, com a reforma de 2007, houve uma generalização da responsabilidade penal das pessoas coletivas, e isso traz uma nova órbita de problemas. O cliente do direito penal deixou de ser o criminoso singular, normalmente associado a crimes mais ou menos violentos ou a uma criminalidade que não era a característica da criminalidade económica ou do designado white collar crime.
Portanto, no fundo, essa reforma em 2007 acabou por vos dar mais trabalho…
Vamos lá a ver, se o direito penal se expande e passa a abranger uma série de comportamentos que anteriormente não eram crime, naturalmente que esta área de prática começa a ter alguma expressão. Mas nós continuamos a não estar no core business das grandes sociedades. As grandes sociedades trabalham sobretudo no direito comercial, no corporate ou na área fiscal as que são mais especializadas nessa área.
No direito empresarial em geral, o crime é uma área muito especializada que é complementar das outras. O problema é que, também na área de prática penal, nós temos hoje uma composição de assuntos que não é só, ou não é predominantemente, de direito penal. Temos muitos temas de contraordenações e isso é outro movimento, se quiser expansionista, do direito sancionatório, porque a par, é curioso, aliás acho interessante ver essa evolução.
Qual é o ponto em que estamos agora?
O direito penal já não é um direito de intervenção mínima, porque se expandiu de uma maneira absolutamente descontrolada e, do meu ponto de vista, como aliás já lhe disse, até perniciosa. E as contraordenações também deixaram de ser aquele ilícito que só sancionava as infrações de natureza menor. Portanto, hoje há um conjunto de grandes contraordenações que podem implicar a aplicação de coimas de vários milhões de euros, que podem mesmo chegar às centenas de milhões de euros. Pense, por exemplo, nas infrações da concorrência.
A dimensão das coimas mostra bem aquilo de que estamos a falar, não é?
Pronto, se for ver também alguns casos já transitados em julgado de contraordenações do Banco de Portugal há, de facto, sanções muito pesadas, ainda que depois venham a ser reduzidas em Santarém. A verdade é que as coimas são pesadíssimas e sobretudo a sanção acessória da inibição do exercício de atividade também é muito pesada. Portanto, nós temos, atualmente, na área de prática penal das grandes sociedades um peso enorme de trabalho na área das contraordenações.
Nessa área mais até do que aquela que é mais visível…
Porque é uma área mais discreta, mas que às vezes envolve valores que são muito mais preocupantes do que o próprio Direito penal.
As empresas têm de estar muito mais atentas do que o que estavam?
Têm que ter o papel preventivo a dois títulos: por um lado, para evitar a prática de infrações. O objetivo primordial de um sistema de compliance é evitar a prática de infrações. Mas depois há um prémio para um bom sistema de compliance, que é a possibilidade de a pessoa coletiva não vir a ser responsabilizada, ou melhor, sancionada, se demonstrar que o infrator atuou contra instruções ou contra ordens expressas da pessoa coletiva.
Portanto, se existir um sistema de compliance bem montado, tem que se demonstrar que funciona efetivamente: que há formação do pessoal, que há uma sensibilização contínua das pessoas para a temática de compliance, que há uma atualização periódica dos regulamentos e dos códigos de conduta. Bom, portanto, se se demonstrar tudo isso e se de repente temos um infrator que viola uma regra expressa da empresa…
E aí a culpa já não é da empresa?
… E bloqueia a responsabilidade. Esta é uma área que, por afinidade com a área penal (porque estamos a falar de direito sancionatório), é também muito desenvolvida nestes últimos anos pelas áreas de direito penal das diversas sociedades. Nas diversas empresas, que tem interesse nas empresas. Nesse aspeto, ao estar numa grande estrutura como a Cuatrecasas, acabei por exercer mais essa área do que, se calhar, se estivesse numa estrutura sozinho, imagine…
Hoje é praticamente impossível exercer advocacia sozinho. A Cuatrecasas é uma sociedade multinacional e de grande dimensão. Portanto, o conjunto de clientela e mais, e as parcerias estratégicas que a sociedade tem neste momento, de que dispõe e que são de excelência todas elas. Esta presença da sociedade a nível global é, a nível de referenciação de clientes e de fonte de clientes, fundamental.
No fundo, não tem de ir à procura de clientes…
Os clientes acabam por aparecer e são é outro tipo de clientes com outro tipo de assuntos. Eu vejo isso por comparação com colegas que mantêm sociedades de âmbito mais pequeno, como por exemplo, do Dr. Saragoça da Matta ou o Dr. Raul Soares da Veiga, que são, enfim, escritórios com uma excelente clientela, mas que é uma clientela que ainda tem um grande peso do cliente individual. A contrapartida das grandes sociedades é que, por via da massificação da clientela, nós temos, muitas vezes, situações de conflito de interesses que são conflitos deontológicos uns, outros são conflitos de natureza estratégica ou comercial, que nos impedem de assumirmos certos patrocínios por essas razões.
E a nível mais mediático? Como é advogado dos casos mediáticos que sabemos, também acha que o facto de estar na Cuatrecasas lhe possa vedar a aceitação de outros casos…
Com certeza que sim, mas isso é assumido, não é imposto. Há um determinado perfil de cliente que não se adequa ao tipo de advocacia que a Cuatrecasas faz. Não se adequa por variadíssimas razões, porque a nossa estrutura não está preparada para tratar esse tipo de casos. O cliente pode não ter sequer capacidade financeira para recorrer aos nossos serviços ou pode ter numa fase inicial, mas esgota-se. E uma coisa é um primeiro ano de honorários, outra coisa é o segundo, o terceiro, o quarto…
Qual foi o processo que lhe deu mais ‘gozo’?
Há variadíssimos casos. O processo ou os processos do prof. Manuel Maria Carrilho, à primeira vista, seriam processos que não se encaixavam no perfil de advocacia que nós fazemos, mas, no entanto, foram esses, se quiser. Não é porque os outros não tenham sido interessantes, porque processos como o da Casa Pia também o foram.
Se temos um juiz de instrução cuja função no sistema é a de um juiz de liberdades, portanto, é alguém que está lá para controlar a atuação do Ministério Público… Se a pessoa que está nessa função não exerce bem, e é ele próprio um acusador ou um polícia, o sistema não pode funcionar.
Mas tem noção de que foi a Casa Pia que o trouxe para a “ribalta”, passo a expressão.
Com certeza que sim, a Casa Pia era quase inevitável, não é? Tivemos também o caso dos hemofílicos, que envolveu Leonor Beleza. Agora este processo era interessante porque tínhamos a capitanear a defesa o Dr. Proença de Carvalho. Que era, de facto, o advogado de referência e que patrocinava a arguida mais importante do processo. Aprendemos todos muito com ele. Também lá estava o Dr. Ricardo Sá Fernandes, e estavam dois jovens promissores, enfim, um menos jovem, com uma diferença de um ano ou dois, que eram eu e o Rogério Alves.
Mas estava-me a falar do Manuel Maria Carrilho…
Era um caso com outros contornos e de cliente individual e isolado, era quase um cidadão sozinho contra o mundo inteiro. Porque a violência doméstica passou a ser o crime mais grave, o crime mais infamante, enfim, o crime que albergava todos os ódios da sociedade.
Quase que socialmente mais reprovável…
É. E esse caso tinha a grande particularidade de contrapor duas figuras que eram muito mediáticas. Portanto, aquilo foi uma luta difícil, era e é um cliente difícil.
Qual é um dos grandes defeitos do nosso sistema judicial?
Pensando naquela santíssima trindade de tribunais, Ministério Público e advogados, aquilo que faz com que verdadeiramente o nosso sistema não funcione bem é a falta de vocação dos protagonistas que, a cada momento, estão nos lugares do sistema.
Magistrados judiciais ou do Ministério Público?
Todos, e até advogados. Repare, e isto tem muito a ver com aquilo que eu estava a dizer: eu sinto-me relativamente bem no papel da defesa dos “maus”, dos arguidos, porque ando há quase 30 anos a fazer isso, e fui formatando a minha prática profissional e a minha experiência profissional para fazer defesa penal.
No caso da magistratura, o que está a dizer é que, como é demasiado generalista, nem sempre a coisa corre tão bem, é isso?
Não. Penso que a magistratura tem de ser generalista, com especialidade em direito penal e processo penal, não mais do que isso. O que estou a dizer não é tanto uma questão de conceção do sistema. É das pessoas que ocupam determinadas funções no sistema e que, muitas vezes, não estão… Não concretize ou não me peça para concretizar. Falámos até disso, e eu até já dei alguma opinião sobre isso.
Se temos um juiz de instrução qualquer cuja função no sistema é a de um juiz das liberdades, portanto, é alguém que está lá para controlar a atuação do Ministério Público… Se a pessoa que está nesta função não a exerce bem e é ele próprio um acusador ou um polícia, o sistema não pode funcionar.
Como é que pode estar a dizer isso e pedir-me para não concretizar?
Se calhar por desnecessidade. Pronto, e isso cria, na opinião pública, outro problema enorme, não é?
O papel do justiceiro, como é visto, por exemplo, Carlos Alexandre?
Cria uma determinada convicção do que é a justiça e para o que é que serve a justiça, que depois se traduz naquelas, enfim, naquelas inquietações de que o processo chegou ao fim e ninguém é condenado.
Como interpreta a decisão dos Vistos Gold?
Os Vistos Gold é reflexo disso e é reflexo também de uma mudança dos tempos. Há hoje uma tendência, que também é preocupante, do direito penal, que tem muito a ver com o fenómeno de neocriminalização, da expansão do direito penal e do que se espera do direito penal. Do que se espera que ele possa fazer. E o fenómeno dos Vistos Gold aparece num contexto: é o primeiro grande processo da era Joana Marques Vidal. O primeiro processo que põe no banco dos arguidos altos quadros do Estado. Situações que são, e que se repetiram agora em Tancos. E que são muito más do ponto de vista da perceção que os cidadãos têm da justiça, dos órgãos de polícia criminal.
Porquê?
Porque no processo dos Vistos Gold, não sei se se lembra, houve a dada altura uma interferência da investigação da Polícia Judiciária com atuações dos Serviços de Informações. Nesse contexto, o processo dos Vistos Gold era uma coisa, enfim, de uma dimensão colossal, não é? Até se usaram expressões que, vindas de onde vieram, me pareceram excessivas e até reprováveis, a dizer que isto é um lamaçal de corrupção, uma coisa nunca vista, e tal, quando, na verdade, aquilo que estava em causa eram coisas muito pequeninas.
Accountability. Onde é que isso está na magistratura? Para a magistratura?
Em especial do Ministério Público. Eu estou sempre a falar do sistema penal, mas os tribunais não tomam iniciativas, os tribunais julgam o que chega lá. Quem toma as iniciativas são: ou os particulares, através das queixas, denúncias que fazem, ou o Ministério Público no âmbito da sua investigação oficiosa de crimes.
Qual seria a solução? Extinguir o tribunal central de instrução?
Não. Nós temos é que ter pessoas que tenham vocação para isto, que tenham uma sólida formação. Mas os juízes não podem ser despedidos. Portanto, como é que se resolve essa questão? O Conselho Superior não pode fazer nada em relação a isso…
Não se pode fazer nada, de facto. Bem, pode exercer ação disciplinar em caso de infração disciplinar. E os juízes, apesar de serem irresponsáveis, também podem cometer crimes no exercício das funções. Não são absolutamente irresponsáveis. Ninguém é absolutamente irresponsável, não é?
Está a falar outra vez dos juízes de instrução…
Os juízes de instrução na fase de inquérito e na fase de instrução? Na fase de julgamento, os juízes de julgamento podem manter as prisões preventivas também, não é? A questão é que a prisão preventiva tem que ser encarada como é: verdadeiramente excecional. Portanto, não pode ser aplicada de ânimo leve…
Concorda que deixou de ser?
Quer dizer, há coisas que me surpreendem. Porque eu vejo situações que são noticiadas, em que havia uma justificação forte para a prisão preventiva, porque precisamente se percebe que se está em presença de indivíduos que são perigosos, que têm uma tendência para a prática de crimes, que causam determinado alarme social, não é? E outros? Porque não podem ficar com obrigação de permanência na habitação, por exemplo? Ou com proibição de contactos? É preciso prender preventivamente?
Então, mas como é que se pode pedir contas à Magistratura?
Pedindo, que é uma coisa que não se faz. Repare, quem, neste momento, escrutina o sistema? Eu não queria pôr a Magistratura em causa… Mas todos nós temos que ser escrutinados. E quem pode escrutinar com eficácia o funcionamento da justiça é a comunicação social.
O que prevê quanto aos próximos processos em 2019?
Há muitos megaprocessos em curso. Vamos lá ver, a Operação Marquês, o que se espera é que, de facto, a instrução chegue ao fim de 2019. E vai ser muito interessante, porque temos um juiz que tem um perfil diferente do outro juiz. Só há dois juízes no Tribunal Central de Instrução Criminal, mas temos um juiz que, de facto, enfim, desde a contestação e as dúvidas que se levantaram sobre o sorteio, é diferente. Eu, aliás, não percebo. Para mim um sorteio é um sorteio absolutamente limpo. Não pode ser de outra maneira. Porque senão não é só a atribuição desta instrução a este juiz que está em causa.
Inclusive as que foram parar às mãos do Carlos Alexandre, não é?
Acho surpreendente, não é? Para dizer o mínimo. Bom, mas, voltando à Marquês, vai ser muito interessante ver como é que passa pelo crivo da instrução um processo desta dimensão. Vai ao universo BES e centra-se depois nos polos, até da vida pessoal, do engenheiro José Sócrates, não é? Bom, para que é que isto serve? Para criar uma confusão monumental.
Do ponto de vista dos advogados de defesa, quanto mais confusão se puder criar, melhor. Mas a culpa não é nossa. Mais uma vez, nós ficamos com o odioso, não é? “Ah, fazem prescrever os processos, fazem isto e fazem aquilo”. Não. Dão-nos de bandeja essa possibilidade. Se eu tenho um processo que está cheio de complicações… Aproveito-as.
E os juízes, apesar de serem irresponsáveis também podem cometer crimes no exercício das funções. Não são absolutamente irresponsáveis. Ninguém é absolutamente irresponsável, não é?
Ou seja, dão-vos de bandeja as manobras dilatórias?
Tenho dificuldade em conceber como manobras dilatórias aquilo que são direitos fundamentais dos arguidos. E acho inconcebível, repare, uma evolução que tem havido na restrição do direito ao recurso. Cada vez menos se recorre para o Supremo. Porque não é possível recorrer para o Supremo. Está tão limitado, tão limitado, tão limitado o recurso, que pouquíssimas coisas lá chegam. A jurisprudência do Tribunal Constitucional é cada vez mais formalista. Aquilo em que o Tribunal Constitucional se tem vindo a especializar é em rejeitar os recursos. Portanto, não conhece o fundo da questão, rejeita por isto ou por aquilo, normalmente por questões formais de menor importância.
Quando a Filipa fala em manobras dilatórias, referindo-se, por exemplo, ao direito ao recurso, ao exercício de direito ao recurso, às vezes para lá do que é imaginável, o que eu lhe contraponho é o seguinte: se um processo demora 5, 6, 7, 8 anos na fase de inquérito, não estará a esgotar-se prazo prescricional? Não há nenhum recurso, nem os recursos para o Constitucional nem os recursos para o Supremo, que eu conheça, que demorem na sua tramitação mais do que um ano e meio, dois anos.
Portanto, acha também que há tolerância a nível processual penal. A nível da duração dos inquéritos?
Não. Responsabilizem quem tem os inquéritos. Repare, o processo da EDP, que eu conheço relativamente bem, é um processo que esteve anos parado. Anos. E continua ali a andar a passo de caracol. Se se esgota…
Mesmo o Marquês, o Marquês também está…
O Marquês, apesar de tudo, lá andou… Não é comparável o processo da EDP a este processo. O processo Marquês também reflete opções de estratégia processual que me parecem erradas. Os megaprocessos nunca conduzem a bom resultado e, muitas vezes, levantam problemas logísticos brutais. Repare, a primeira coisa que se discutiu, quando começou a instrução, era onde é que cabiam os advogados todos. Porque não havia sala no Tribunal Central para estarem os advogados todos.
Só há o tribunal de Sintra, provavelmente.
E não sei se chegará. Em dimensão, é capaz de chegar… Mas bom, pergunto eu, para que serve, no mesmo processo, apesar de haver polos de contacto. Qual é o interesse, por exemplo, de julgar o universo das relações PT, Banco Espírito Santo, Grupo Espírito Santo na Operação Marquês? Tem algum interesse? O que é que se vai daqui tirar, quer dizer? Aquilo que é matéria, que tem uma certa interpenetração, deve integrar naturalmente o processo Marquês, mas tudo o que não tem a ver, tem que sair.
Mas isso é o quê? Ambição por parte do Ministério Público?
Eu acho que o Ministério Público tem um defeito genético que ainda não ultrapassou: é um péssimo gestor de recursos. O Ministério Público não sabe gerir recursos. E, por isso, está-se sempre a queixar de que tem escassez de meios. Precisa de mais magistrados, precisa de mais peritos, precisa de mais isto, precisa de mais aquilo. Precisa sempre de mais alguma coisa. Mas a primeira coisa de que precisa é de orientações claras de gestão. Definição de prioridades, constituição de equipas, eu já disse isto não sei quantas vezes, já está completamente gasto.
Prazos efetivos para que se acabe um inquérito?
Eu estive num processo que se arrastou longamente na fase de inquérito, com inquirições de testemunhas… estava a acompanhar testemunhas que estavam a ser ouvidas por cinco inspetores da judiciária e dois inspetores tributários. Portanto, para ouvir uma testemunha, tinha sete pessoas dos OPC(s). Para que é que eram precisos cinco inspetores da judiciária, mais dois tributários? Para quê? Para ouvir uma testemunha? Portanto, gerindo recursos desta maneira, nunca há recursos, como é evidente.
A seu ver, o segredo de justiça deveria pura e simplesmente desaparecer?
Não. O segredo de justiça já desapareceu.
Sim, mas oficialmente…
Se calhar resolvia muitos dos problemas humanos do Ministério Público, mas não, acho que devia existir e devia ser respeitado. Agora, quando a Filipa me pergunta se não é uma hipocrisia? É. Repare, um dos cavalos de batalha da Drª Joana Marques Vidal, o primeiro até, foi combater a violação do segredo de justiça.
Com a famosa auditoria…
Fez uma auditoria. A auditoria deu resultados que são interessantes e surpreendentes. O segredo de justiça é violado naqueles casos em que há interesse mediático. Portanto, os casos em que devia existir e ser preservado são precisamente os casos em que o segredo de justiça é violado. E depois, obviamente que é uma hipocrisia manter.
Porque se se diz que o segredo de justiça é: ponto número um, preservar o bom nome e a reputação dos visados numa investigação criminal, não é? Fazendo com que o nome dessas pessoas não venha a público se se concluir que não há matéria para os acusar. Segundo, garantir a eficácia das investigações.
Qual é o balanço que faz do mandato de Joana Marques Vidal?
O balanço do mandato da Drª Joana Marques Vidal foi francamente positivo. E foi francamente positivo porque, por um lado, creio que, tendo falhado em alguns dos seus objetivos, já vimos um: o combate à violação do segredo de justiça (foi um fracasso rotundo do mandato), mas há uma coisa de que ninguém a poderá acusar, que é de falta de isenção, falta de independência e de eficácia no exercício da ação penal.
Houve um conjunto de processos que surgiram e que só se tornaram possíveis por causa de uma atuação muito determinada da Drª Joana Marques Vidal, e o Ministério Público deve atuar assim. Ou seja, o Ministério Público, na presença de indícios da prática de crimes, sejam quais forem os seus autores, deve prosseguir a ação penal. É para isso que ele existe.
Comparando com o que se passou na Operação Marquês e com o que se passou no Freeport, no mandato do Pinto Monteiro…
Eu não consigo fazer essa comparação, porque essa comparação tem subjacente processos de intenção… (pausa). Atitudes neste ou naquele sentido. Eu também não sou dos maiores críticos da atuação do Conselheiro Pinto Monteiro. O Conselheiro Pinto Monteiro fez o que pôde fazer num contexto difícil e num ambiente difícil. Porque a magistratura do Ministério Público é um ambiente difícil. Tem muitas personalidades e, como ele disse, tem muitos barões, muitas baronesas, muitos feudos. É verdade.
Qual é a diferença fundamental? É que a Drª Joana Marques Vidal conseguiu, pela determinação que trouxe, por, enfim, algumas mudanças que fez muito decisivas em pontos-chave da magistratura, conseguiu levar a atuação do Ministério Público a pontos que eram quase inimagináveis nos mandatos anteriores.
Mas nesse aspeto acha que ela marcou, digamos assim, o que daqui para a frente pode vir a acontecer?
Personalizar demasiado é sempre mau e nem me fica bem personalizar demasiado. Mas se quiser também recuar no tempo, o Procurador-Geral da República Cunha Rodrigues, que esteve no cargo dezasseis anos, enfim, também tinha a sua determinação, também perseguiu muitos políticos. Acusou muitos políticos. Tinha era uma, se quiser, uma noção de equilíbrio, porque atacava umas vezes o PS, outras vezes o PSD, não é?
Conhece, por exemplo, o processo dos hemofílicos. Uma farpa para o lado do PSD, mas depois, no caso do Fax de Macau, foi para o outro lado. Depois na UGT também atacou o Torres Couto, outro e outras pessoas. Portanto, enfim, tinha uma gestão, digamos assim, muito hábil. Quase de um cardeal dos processos. Também foi uma figura marcante na Procuradoria-Geral da República.
A Drª Joana Marques Vidal, de facto, tinha esta determinação e este sentido de independência que a fez fazer bem o seu trabalho. Agora, como é que nós fazemos o balanço final? O balanço final tem que se fazer no final dos processos. Porque uma coisa é fazer bem o seu trabalho, partindo do princípio que o fez, outra coisa é o resultado desse trabalho. E, muitas vezes, a escassez dos resultados pode significar que o trabalho não foi assim tão bem feito.
Pelos magistrados do Ministério Público titulares do inquérito e pelos juízes de instrução?
Nem só pelos magistrados. Repare, muitas vezes é pelas próprias polícias. Eu ainda estou para perceber porque é que, por exemplo, há um determinado magistrado que prefere trabalhar com a Autoridade Tributária e não trabalha com a Polícia judiciária.
Está a falar da Operação Marquês e de Carlos Alexandre…
Não só. Da Furacão também. Porque é que não trabalha com a PJ e trabalha com a Autoridade Tributária? Por alguma razão? Aparentemente não devia ser assim, não é? Mas é.
Se fosse PGR, o que mudaria?
Nunca seria. Eu tenho muitos filhos para alimentar e, apesar de tudo, aqui ainda me pagam um bocadinho melhor (risos). Mas olhe, passaria por duas medidas fundamentais, que um Procurador-Geral da República deve ter condições práticas e legais para fazer e que não tem.
Uma: ter uma coordenação funcional absoluta sobre os órgãos de polícia criminal. É inconcebível que as polícias não cooperem entre si, não troquem informações, e que, muitas vezes, não prossigam as instruções que recebem dos magistrados para investigar neste ou naquele sentido.
Depois, o Ministério Público ganhava muito se tivesse uma unidade de informações. Informações no sentido de intelligence. De informações. Que muitas vezes, nós, do lado das defesas, percebemos que há muita matéria que tem interconexão e que está, por exemplo, num processo, numa comarca mais afastada e que pode ter interesse…
Para o processo?
Para trazer informação relevante para o processo do BES, por exemplo. Só para dar um exemplo. E não há uma unidade de informações. Teria que trabalhar no DCIAP e na dependência da Procuradora Geral, ou do Procurador Geral, que fizesse exclusivamente análise de informação. Análise e partilha de informação. Isto é tanto mais útil e interessante quando também ainda se verifica ao nível das mentalidades uma cultura de capelinha.
De feudo, como estava a dizer.
Há muitos magistrados que guardam a informação para eles. Querem ter os louros, querem brilhar, ou até às vezes são pouco sociáveis e não partilham a informação. Às vezes temos um magistrado do gabinete ao lado que precisa de avançar num determinado sentido e temos o outro que tem informação, que podia ser útil e relevante para o colega do lado, mas que não a dá. Não dá porque não simpatiza, porque ‘ele não sei quê’… E porque quer guardar a informação.
Não estão a funcionar para um objetivo comum?
Isso não é poder, como sabemos. Portanto não há ali uma coordenação das polícias e dos próprios magistrados, que tem que ser feita.
E falta de cooperação também, não é?
Falta de cooperação. Há. Há aquela coisa inconcebível, e repare que, mais uma vez, significa que o sistema anda em roda livre e que não está bem controlado. Mas isso aí são os políticos que têm que controlar, não é? Esta celeuma toda com a alteração da composição do Conselho Superior do MP, eu também não a percebo muito bem.
Entidades externas?
…Um controlo democrático. É claro, depois o que se pode dizer é assim: ‘ah, mas os deputados, a qualidade dos deputados não é a adequada para exercer essa função’. Bom, mas isso é um problema da qualidade dos deputados, não é da conceção do sistema. Eu custa-me ver, ou conceber sequer, que há um órgão com a importância do Ministério Público…
Acho que a crítica não tinha a ver com a qualidade dos deputados, tinha mais a ver com a intervenção.
Tinha mais a ver com a interferência política. Mas eu prefiro ter algum controlo político da atividade do Ministério Público do que ter um Ministério Público descontrolado. O Ministério Público não é um órgão de soberania. Muitas vezes há ali a confusão.
Tem autonomia, mas não tem independência…
Não. Eu penso que deve ter independência do poder político. Não tem é que ser um órgão totalmente descontrolado. Totalmente descontrolado e encerrado, se quiser, numa espécie de redoma corporativa que trata tudo em casa e quando é preciso varrer para debaixo do tapete, varre e a coisa passa, não é?
O que acha que poderá acontecer agora ao DCIAP com a mudança?
Vamos dar tempo ao tempo para ver, mas acho que o DCIAP tem uma dinâmica própria e eu sou um grande defensor do DCIAP e, se quiser, para tocarmos também noutra questão interessante…
Deve pedir-se contas à magistratura, pedindo. Que é uma coisa que não se faz, mas todos nós temos de ser escrutinados.
Não é do Tribunal Central de Instrução Criminal, mas é do DCIAP…
A especialização dos juízes é negativa. Tem o exemplo disso, há muita gente que vai ficar melindrada com o que eu vou dizer, mas não quero saber muito disso. O Tribunal da Concorrência Regulação e Supervisão de Santarém hoje está, em larguíssima medida, muito dependente daquilo que é o contributo dos reguladores. Que deviam ser aqueles cuja atividade devia fiscalizar…
Porquê? Porque, de facto, como trata de matérias muito complicadas do ponto de vista técnico, e como quem tem o know-how dessa técnica…
Portanto há aí toda uma, passo a expressão, promiscuidade?
Eu diria uma dinâmica, que não é a melhor dinâmica para a independência do tribunal. E isto depois, enfim, contrapõe-se. Bom, mas com uma matéria muito especializada, e por isso é bom haver um corpo de juízes especializados. Portanto, a minha ideia é de que os juízes devem ser especialistas em áreas do direito com que trabalham.
É defensor do DCIAP, não é?
Defensor do DCIAP e até com mais especialização, se quiser. Porque hoje em dia, a criminalidade transnacional, altamente organizada, tem áreas que, enfim, não são passíveis de grande generalismo. Por exemplo, um procurador que combata o branqueamento tem que ter uma especialização diferente de um que está virado, por exemplo, para a área do terrorismo. Ou até da própria criminalidade fiscal. São realidades que têm interpenetrações, mas são diferentes. E aí sim, tem que haver grande especialização. A esse nível. Como há a nível dos advogados.
Depois, outra ideia, um bocadinho revolucionária, que ninguém acolhe no Ministério Público, e também não percebo muito bem porquê, é de que me parece, à semelhança do que acontece com os advogados, que os magistrados que fazem o inquérito deviam ser os magistrados do julgamento. É uma desvantagem enorme o processo passar do magistrado que fez o inquérito, que sabe o que é que o processo tem, que sabe quais são as realidades do processo…
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“Prefiro ter um Ministério Público controlado politicamente do que descontrolado”
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