É uma maratona que ainda vai a meio, mas o administrador do Banco de Portugal, Hélder Rosalino, está otimista em relação ao euro digital, que coexistirá com as notas que usamos diariamente.
Ainda há muitos obstáculos pela frente, nomeadamente políticos, pois “nem todos os países olham da mesma maneira” para o projeto, e, embora o Banco Central Europeu (BCE) só venha a tomar uma decisão final dentro de quatro anos, o administrador do Banco de Portugal responsável pela área dos pagamentos, Hélder Rosalino, considera que “o euro digital é inevitável” e vai permitir reforçar a autonomia e independência da economia da Zona Euro e responder à evolução tecnológica e às novas necessidades dos cidadãos.
Se for para a frente, o euro digital vai coexistir com as notas e moedas que já temos na nossa carteira, funcionando como uma extensão eletrónica do numerário, embora possamos utilizá-lo mesmo sem acesso à internet. “É o que é diferente dos outros meios de pagamento eletrónicos. O euro digital vai funcionar no modo online e offline”, explica Hélder Rosalino em entrevista ao ECO.
O BCE avançou com o euro digital para a fase de preparação, depois de dois anos em que esteve a investigar as condições de viabilidade. O que é que vai ser feito nesta fase?
Vamos fazer três coisas. Primeiro, vamos desenhar regras operacionais. Todos os instrumentos de pagamento tem de ter regras operacionais, o chamado rulebook, o livro com as regras técnicas que todos os operadores têm de conhecer para parametrizar os seus sistemas informáticos e as suas plataformas para poderem utilizar esse instrumento.
Segundo, vamos selecionar prestadores de serviços tecnológicos para nos oferecerem a visão tecnológica que vai estar por trás deste produto. E o terceiro objetivo é realizar as primeiras experiências em ambiente fechado e controlado. No fim destes dois anos, estaremos em condições de passar para uma fase de industrialização.
Uma decisão final só virá daqui a dois anos?
Haverá uma decisão dentro de dois anos para passar à tal fase de industrialização. Não se sabe exatamente quanto tempo durará essa fase, mas espera-se que dure também cerca de dois anos. Portanto, estaremos a falar de 2027 ou 2028. Nessa altura, espera-se ter todas as condições criadas para que o Conselho de Governadores, a qualquer momento e verificadas determinadas condições, possa decidir lançar o euro digital.
Temos outros bancos centrais a avançarem com a sua própria moeda digital. Por outro lado, o euro digital vai permitir também ao BCE e à Zona Euro acabar com o grande domínio de empresas como a Visa no mercado europeu. O euro digital é inevitável ou o que é que pode correr mal para que não seja implementado?
O euro digital vai ser o único instrumento de pagamento digital universalmente aceite na área do euro, sem custos para o utilizador. Significa que, de facto, estamos a criar verdadeiramente uma marca de pagamentos europeia. Vai ter mesmo uma marca e, com isso, vamos reforçar o papel da área do euro no sistema financeiro, vamos ancorar o sistema monetário e o sistema de pagamentos europeu a uma moeda digital emitida pelo banco central e vamos reduzir a nossa dependência estratégica dos grandes fornecedores de sistemas de pagamentos que não são europeus.
Quais serão os riscos deste processo? Este processo está a meio, é uma maratona. Já percorremos metade da maratona. Tivemos já duas fases – a fase de estudo e a fase de investigação. Vamos passar para a fase de preparação e depois teremos uma fase de industrialização. Temos pelo caminho ainda muitas etapas a percorrer e muitos obstáculos a ultrapassar. Desde logo o obstáculo legislativo. Não é possível emitir o euro digital sem que o regulamento europeu defina o que é o euro digital.
O euro digital vai ser o único instrumento de pagamento digital universalmente aceite na área do euro, sem custos para o utilizador. Significa que, de facto, estamos a criar verdadeiramente uma marca de pagamentos europeia. Vai ter mesmo uma marca e com isso vamos reforçar o papel da área do euro no sistema financeiro.
Vai decorrer em paralelo nesta fase.
Exatamente. Até final de 2024, espera-se que se possa ter o processo legislativo concluído. Também aqui há um conjunto de etapas complexas, porque o euro digital não é unânime. Nem todos os países, nem todos os atores políticos olham para o euro digital da mesma maneira.
Os bancos também olham com alguma cautela para o projeto.
Alguns bancos têm receios. Há opiniões públicas nalguns países que mostram receio. Há decisores políticos que olham para o euro digital com algum ceticismo. Mas sinto que, de facto, a nível dos bancos centrais e dos governadores de bancos centrais, há um grande empenho e um grande foco na concretização deste projeto, desde logo com a liderança forte da Presidente Lagarde.
E também sinto que nas outras instituições europeias, na Comissão Europeia e no Parlamento Europeu, há vontade de preparar a área do euro para este desafio. Há também todas as dimensões técnicas que têm de ser ultrapassadas. Como é que se vai emitir o euro digital. Vai ser numa plataforma centralizada ou numa plataforma descentralizada? Quais vão ser os montantes que cada um de nós pode ter? Vamos ter mais do que uma conta?
O euro digital só vai ser emitido se se verificarem condições que justifiquem a sua emissão, designadamente uma redução muito significativa da utilização de numerário, a emergência de outras moedas digitais à escala global, alguma competição neste domínio à escala global, a necessidade de oferecer outras soluções aos cidadãos…
Ou seja, quando se considerar que estão verificadas essas condições, haverá uma decisão que será do Conselho de Governadores, porque o regulamento do euro digital vai prever que vai ser o Banco Central Europeu a decidir quando, e em que condições, o euro digital pode ser emitido. Mas há aqui um caminho pela frente. Esta maratona é longa e há dificuldades.
No fim desta maratona, acredita que o euro digital será uma inevitabilidade?
Acho que é inevitável. Sou um grande adepto deste projeto, até porque estou envolvido neste projeto desde o seu início em representação do Banco de Portugal. Gostava de reforçar a mensagem de que o euro digital vai existir ao lado das notas, vai coexistir com o numerário e cada um vai ter o seu papel.
O que nós queremos é levar a opção de escolha aos cidadãos, termos a possibilidade de os cidadãos puderem escolher as notas ou o euro digital, ter as notas na carteira e o euro digital no telemóvel.
O euro digital vai funcionar como as notas e as moedas que trazemos na nossa carteira, mas de uma forma eletrónica. Por exemplo, estou no supermercado e não tenho acesso à internet. Vou poder fazer a minha compra?
Haverá muitas diferenças entre o euro digital e os outros instrumentos de pagamento, mas uma das diferenças mais fáceis de explicar é esta: eu vou poder fazer pagamentos com euro digital mesmo sem rede no telemóvel. O euro digital vai funcionar em modo online e em modo offline. Estão a ser criadas condições tecnológicas para pagar com o euro digital mesmo que não esteja conectado à internet, que não tenha rede. A ideia é que o euro digital possa ser utilizado numa app própria do Eurosistema ou nas apps dos bancos e também nos cartões.
Vai ser possível utilizar o euro digital tal qual nós utilizamos hoje em dia qualquer instrumento de pagamento eletrónico criado pelo sistema bancário. Ou seja, eu vou poder ir a uma loja, a um supermercado, tirar o telemóvel, aceder à app do meu banco e fazer o pagamento ou posso tirar um cartão e pagar. Isso vai ser completamente igual com a vantagem de poder fazer offline com o euro digital.
"O euro digital vai funcionar em modo online e em modo offline. Estão a ser criadas condições tecnológicas para pagar com o euro digital mesmo que não esteja conectado à internet, que não tenha rede.”
Algumas das opiniões mais céticas levantam receios quanto à privacidade. Como é que a privacidade vai ser assegurada?
A privacidade e a segurança na utilização do euro digital são dois tópicos fundamentais. Em relação à privacidade existe a garantia de que a utilização do euro digital vai ser totalmente privada. Haverá uma situação em que eu tenho de criar a conta e aqui haverá alguns procedimentos de onboarding e Know Your Customer que já são praticados pelos bancos.
Em princípio, também vou ter uma conta digital no meu banco e, portanto, esses procedimentos já estão assegurados. A partir daí, a minha utilização do euro digital no dia-a-dia vai ser totalmente privada, vai ser igual à utilização que nós hoje fazemos do numerário.
A privacidade é um elemento fundamental e é só dessa forma que o euro digital poderá ganhar a confiança dos cidadãos. E é isso que está decidido naquilo que foram as decisões que foram sendo tomadas pelo Eurosistema e é também isso que está na proposta do regulamento europeu.
A segurança é outra questão fundamental. Vamos tratar o euro digital tal qual são tratados os instrumentos de pagamento hoje mais utilizados à escala global. Vai haver mecanismos fortes de segurança, todo um conjunto de regras que vão permitir a monitorização da utilização do euro digital, como padrões de utilização, avaliações de risco, prevenção da fraude. Todos esses mecanismos vão ser criados.
Sabemos que no futuro o dinheiro vai ser programável. Imaginemos uma situação em que um pai ou uma mãe dá uma mesada ou uma semanada ao filho e quer programar esse dinheiro para uma finalidade específica, seja para comprar a senha do almoço ou comprar um lanche na escola. Com o euro digital isso vai ser possível?
Isso não vai ser possível. Essa é uma questão que foi muito discutida ao longo do projeto. O euro digital não vai ser programável no sentido em que eu posso reservar uma parte do euro digital para fazer um determinado pagamento, um pagamento específico. O euro digital vai ser totalmente fungível, o que significa que pode ser utilizado para qualquer finalidade.
A ideia de que vou ter uma programabilidade associada ao euro digital não existe. Pagamentos condicionados sim, mas a ideia de programabilidade, em que eu reserve montantes do euro digital para uma finalidade específica e só para aquela finalidade, não vai ser possível. É uma das críticas que têm sido feitas às moedas digitais do banco central, em particular ao euro digital.
Mas é uma opção que fica em aberto para o futuro?
Para já ficou absolutamente afastada essa hipótese. O regulamento europeu também afasta essa hipótese. Se me pergunta se daqui a dez anos o projeto vai ser revisitado e as condições vão ser alteradas, eu não consigo responder. Nas condições atuais, a programabilidade não é uma característica que esteja disponível no euro digital.
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“Há decisores políticos que veem euro digital com ceticismo”, mas é “inevitável”
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