José Manuel Fernandes, histórico industrial do Norte que lidera o Conselho Geral da AEP, adverte para efeito “perverso” da crise política e de uma geringonça que iria “afetar a atitude investidora".
“Com políticas boas ou más, havia uma estabilidade e um horizonte projetado, que agora foi parado. Estamos com a perceção de que as coisas não vão ser fáceis”. Apesar de cada vez mais as decisões dos empresários portugueses “começarem lá fora”, José Manuel Fernandes teme uma repetição de uma geringonça de esquerda que, na sua primeira versão entre 2015 e 2019 “retirou capacidade concorrencial a nível internacional” às empresas nacionais.
O fundador da Frezite, que preside atualmente ao Conselho Geral da Associação Empresarial de Portugal (AEP) e pede um “Ministério da Economia mais musculado e concentrador”, entende que “o país precisa de políticos com mais conhecimento técnico e empresarial”, duvida que a próxima geração saia da universidade tão bem formada e avisa que “as empresas têm de se preparar para fugir do salário mínimo”.
Que impacto é que a crise política em que o país está mergulhado já está e pode ainda vir a ter nas empresas e na economia portuguesa?
O problema que temos, de facto, é a expectativa daquilo que vai acontecer. A situação que foi gerada é muito complicada porque havia uma performance de fundo em relação a termos um governo com maioria que, mesmo para os empresários, era vista como um fator de estabilidade. Com políticas boas ou más, mas havia uma estabilidade e um horizonte projetado, que agora foi parado. Estamos com a perceção de que as coisas não vão ser fáceis.
Ao mesmo tempo há outro fator que está a ficar saliente: a economia empresarial começa cada vez mais a estar independente em relação ao poder político. Porque a nossa economia está a projetar-se no exterior e não é por acaso que estamos a atingir cerca de 50% do PIB nas exportações. Isso dá-nos uma certa autonomia. E muitas vezes as decisões das nossas empresas começam lá fora, não começam cá dentro.
Antecipa, ainda assim, que “as coisas não vão ser fáceis”.
Sim. Em certos temas que gostaríamos de ver projetados e resolvidos não deixa de haver uma paragem no tempo. Em relação a certas ações e reformas que tínhamos esperança de que se iniciassem e desenvolvessem. Concretamente, na componente fiscal e na educação. Começamos a temer em relação a certos fatores que vão chegar às nossas empresas. Há certas decisões que precisamos que sejam acauteladas e resolvidas em relação à questão dos recursos humanos, das pessoas, da sociedade de trabalho. Portanto, tudo isso entra num stop and go.
Devia ter sido procurada uma solução dentro da maioria que havia, como defendeu António Costa, que chegou a propor o governador do Banco de Portugal para o substituir no cargo?
Neste momento, a nossa visão é que a queda do Governo, a demissão do primeiro-ministro e a maneira como o Presidente da República a aceitou têm um fator perverso em relação ao modus vivendi da nossa economia, à maneira como ela estava.
Havia alternativa à queda do Governo?
É sempre uma instabilidade que se gera. De qualquer das formas, o que nos deixa apreensivos é a forma como o país está dividido e não haver uma visão de solução fácil para aquilo que vem aí. A nossa esperança é que a economia caminhe com os valores e a força que adquiriu, num contexto em que tem um certo conforto da internacionalização e da mobilidade cada vez maior das empresas para o exterior.
Quando diz que “o país está dividido” está a antecipar que poderá não haver uma solução imediata para a governação mesmo no período pós-eleitoral, que haja uma instabilidade prolongada no tempo?
Exatamente. Se, porventura, o país vier a encaminhar para uma geringonça de esquerda, posso dizer-lhe que isso vai gerar uma instabilidade muito forte na economia. Não tenho dúvida nenhuma. A experiência anterior, para nós, empresários, foi negativa. Completamente. Tomaram-se medidas não balanceadas, não equilibradas no fator economia, no fator empresa e na parte da coesão social. Penderam só para um lado e perdemos alguma competitividade nessa altura. Precisávamos de medidas de resposta da economia à nossa concorrência internacional e, por motivos de coesão social, retiraram-nos capacidade concorrencial a nível internacional, por legislação proveniente da geringonça. Quando ela devia ter sido equilibrada no sentido de encontrar soluções de equilíbrio que seriam com resultados a contento de ambas as partes.
Quais foram, no seu entendimento, as decisões mais negativas adotadas nessa altura?
Na legislação do trabalho perdemos competitividade com a geringonça. Perentoriamente. Concretamente, na regulação do tempo de trabalho, na gestão da flexibilidade, tudo isso foi bastante nefasto. E num país em perda demográfica, a questão das reformas antecipadas, com a qual a economia real não contava. Isso foi um golpe brutal nas empresas e na atividade económica. Até os próprios trabalhadores ficaram admirados com essa situação. E tivemos casos anacrónicos de pessoas altamente qualificadas que pediram a reforma e que no dia seguinte vieram pedir novamente soluções para poderem reentrar ao trabalho porque, de facto, sentiam-se até deslocados em relação à questão de terem entrado num estado de reforma.
Se, porventura, o país vier a encaminhar para uma geringonça de esquerda, isso vai gerar uma instabilidade muito forte na economia. Não tenho dúvida nenhuma. A experiência anterior, para nós, empresários, foi negativa. Completamente. Retirou-nos capacidade concorrencial a nível internacional.
Temos neste momento um Governo que está em gestão e sob suspeita na Justiça, o Presidente da República envolvido no caso de uma alegada cunha, a Procuradora-Geral da República debaixo de fogo. Estamos a viver uma crise de regime, mais do que uma crise política?
Sim, de certa forma estamos a viver uma crise de regime que tem de ser ultrapassada. Mas estamos a viver uma crise que poderíamos ter evitado. Portanto, acho que cada um tem de assumir as suas responsabilidades. Agora, a nossa visão, que traduz o sentimento geral, é que os empresários não querem uma nova geringonça de esquerda. De maneira nenhuma. Isso vai afetar a atitude investidora dos nossos empresários.
Vê esse risco no horizonte, com o novo líder do PS, Pedro Nuno Santos?
O recado está dado. Venham bater-me, que não me importo.
Falta “mundo empresarial” aos políticos e governantes portugueses?
Faltam mais engenheiros no Governo. O país precisa de políticos com mais conhecimento técnico e mais conhecimento empresarial. E precisávamos de ter as empresas mais aliviadas na área fiscal para poderem redimensionar os seus projetos empresariais com uma base de confiança e, ao mesmo tempo, contarem com uma certa estabilidade da componente legislativa fiscal. É fundamental haver um acordo de regime [na área dos impostos], assim como tem de ser mais célere a justiça na componente económica. Esses são entraves que se levantam à própria atividade económica.
Faltam mais engenheiros no Governo. O país precisa de políticos com mais conhecimento técnico e mais conhecimento empresarial. E precisávamos de ter as empresas mais aliviadas na área fiscal para poderem redimensionar os seus projetos empresariais com uma base de confiança.
Dentro de poucos dias, o salário mínimo nacional sobe para 820 euros. Aumentou 62% desde 2015.
A questão do salário mínimo tem a ver também com uma forte componente do dever da própria liderança, quer sejam empresários, quer sejam gestores de topo. É fundamental as empresas terem ganhos de produtividade para fugirem do salário mínimo. Um jovem que sai de um centro de formação protocolar, com valências já robustecidas em relação à parte informática, às novas tecnologias, não pode começar numa empresa com o salário mínimo. A empresa tem a obrigação de dar-lhe a oportunidade de crescer e rapidamente, porque tem potencial para isso. Assim como os jovens licenciados. Embora seja comum ouvirmos dizer que estamos perante as gerações mais bem formadas, ponho isso em dúvida em relação às saídas dos próximos universitários, às próximas gerações, da maneira como está a ser conduzida a educação em Portugal. É inadmissível aquilo que se está a passar na relação entre o Governo e os professores. Como diz o Andreas Schleicher [diretor para a Educação e Competências da OCDE], ‘a educação de hoje será a economia do amanhã’.
Teme, por isso, que as próximas gerações não saiam da escola tão bem preparadas quanto as anteriores?
Absolutamente. Vemos um problema que já dura há muito, que está a afetar as novas gerações e as famílias, e está a colocar-nos numa posição de défice de conhecimento básico. Por outro lado, a partir de uma certa dimensão, as empresas têm de ter na sua visão estratégica uma componente importantíssima que é a academia interna, ou seja, terem planos de formação interna, ajustados às necessidades, ao know-how específico e ao core business da empresa. E essa é uma excelente oportunidade para fugir do salário mínimo, para a valorização das pessoas. Se uma pessoa está permanentemente num posto com o salário mínimo e, ao mesmo tempo, a ser avaliada num perfil de desvalorização porque não é especializada, então alguma coisa está mal na gestão também. As empresas têm de se preparar para fugir do salário mínimo, para fazer o upgrade de especialização, dar conhecimento aos seus colaboradores.
Se uma pessoa está permanentemente num posto com o salário mínimo e, ao mesmo tempo, a ser avaliada num perfil de desvalorização porque não é especializada, então alguma coisa está mal na gestão também. As empresas têm de se preparar para fugir do salário mínimo.
Está a dizer que o percurso ascendente do salário mínimo não pode ser uma dor de cabeça para os empresários?
É uma dor de cabeça sobretudo nas empresas que estão em setores em que o investimento não tem sido processado em termos de atualização de layouts competitivos. Muitas vezes, empresas que estão em setores que competem com produtos provenientes da Ásia, onde as condições sociais mínimas da integridade humana, do ambiente de trabalho e da pegada de carbono não são respeitadas. No têxtil, por exemplo, sobretudo na parte da fiação, na parte primária básica, em que as nossas empresas estão a competir com empresas do Bangladesh.
Tirando esses casos específicos, como dizia, se forem bem geridas, as empresas portuguesas conseguirão pagar salários superiores.
Indiscutivelmente. As empresas têm de fazer esse esforço. Há duas semanas, a AEP deu início a um protocolo com o Ministério do Trabalho e com a Associação Nacional de Jovens Empresários (ANJE) para a criação da Academia do Empresário. Não será tanto uma academia, mas mais um fórum, porque não queremos concorrer com as escolas de gestão e com as universidades. Mas é importante prepararem-se na vertente da produtividade porque esses ganhos permitem às empresas libertarem-se da impossibilidade de darem melhores condições remuneratórias, sociais e de qualidade de vida aos seus trabalhadores.
É importante, de facto, prepararem-se e estarem aptas a responder com produtividade. A formação e a capacidade de conhecimento do empresário são cada vez mais prementes. Partimos do princípio de que uma empresa é uma sociedade humana permanentemente aprendendo. Não pode depender de uma elite, todos são elementos ativos da produtividade – e isso permite uma valorização homogénea em todas as áreas de atividade. E, lá está, permite perfeitamente darmos respostas em relação à questão do salário mínimo, embora seja mais fácil em certos setores do que noutros.
Estamos a exportar jovens licenciados com uma qualificação superior e, ao mesmo tempo, estamos a importar mão-de-obra que não tem qualificação e aproveitada para contrabalançar áreas industriais e de serviços. As nossas embaixadas e o AICEP têm de ser as instituições de contratualização lá fora.
Já o ouvi em vários fóruns preocupado com a saída de jovens qualificados e com a entrada de imigrantes pouco qualificados. Mas como é que a economia e as empresas portuguesas conseguem competir no mercado internacional para atrair esses imigrantes mais qualificados?
Os imigrantes mais qualificados que podemos atrair até podem ser os nossos jovens licenciados que foram lá para fora servir outros países. A capacidade atrativa para os receber depende do nosso próprio crescimento, dos nossos padrões de oferta. Temos de crescer acima da média europeia e temos potencial para o fazer. O tecido empresarial em Portugal tem todo esse potencial.
Estamos a exportar jovens licenciados com uma qualificação superior e, ao mesmo tempo, estamos a importar mão-de-obra que não tem qualificação e aproveitada para contrabalançar áreas industriais e de serviços. O ministro da Economia pediu-nos recentemente uma reunião para nos pronunciarmos sobre como podemos aumentar a qualificação dos imigrantes que recebemos para setores em que é necessária mão-de-obra intensiva. As nossas embaixadas e o AICEP têm de ser as instituições de contratualização lá fora. As próprias instituições setoriais podem fornecer ao Ministério do Trabalho ou ao Ministério da Economia os números de défice de trabalhadores que têm em relação a oportunidades de trabalho que estão abertas.
Mas há setores, desde a agricultura à construção, passando pela indústria transformadora, em que são necessários estes trabalhadores estrangeiros, mesmo que sejam menos qualificados, até pela falha demográfica do país.
Absolutamente. Mas há um parâmetro novo que recebemos de alguns dos nossos associados: que venham com as famílias. Se forem recrutados de forma organizada e vierem com as famílias, podem perfeitamente integrar-se no nosso país e serem um complemento criativo anti défice demográfico. Agora, se vêm para cá e aceitam viver em condições deploráveis, explorados por redes clandestinas a quem pagam mais do que retiram para proveito familiar, gera-se uma situação de instabilidade em que, tendo uma oportunidade melhor noutro país ao lado, como Espanha, não ficam cá. Temos de organizar este recrutamento em termos de [haver] uma origem organizada e, ao mesmo tempo, que a componente do ser humano seja respeitada.
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“Os empresários não querem uma nova geringonça de esquerda. O recado está dado”
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