O advogado fala sobre a condenação a pena suspensa de quatro anos de Rui Pinto. O advogados foi um dos lesados do hacker. Juíza obriga o arguido a pagar 15 mil euros ao também assistente no processo.
Em dezembro de 2019, o mundo da advocacia tremeu quando foi tornado público que um dos maiores escritórios de advogados do país, a PLMJ, estava a ser alvo de pirataria informática. À data, à Advocatus, o escritório assumia que estava “a avaliar o impacto potencial desse acesso ilegítimo a informação, tendo definido de imediato, em conjunto com uma equipa de especialistas, medidas preliminares de proteção e contenção”.
Já depois da notícia do ECO, o Expresso divulgava documentação sobre alguns processos, que envolviam advogados do escritório, incluindo os ligados a Manuel Pinho e António Mexia, a Ricardo Salgado e Henrique Granadeiro, à holding estatal Parvalorem e ao ‘super-espião’ Jorge Silva Carvalho, e que teria sido exposta. E que a Polícia Judiciária (PJ) já estaria a investigar.
Posteriormente, também escritórios como a Vieira de Almeida, a Morais Leitão e a Abreu Advogados também viriam a ser vítimas do pirata informático.
Paralelamente, foram ainda divulgados emails no blogue “Mercado de Benfica” — o mesmo que deu origem ao caso e-toupeira — que divulgavam conversas entre os três advogados do Benfica: João Medeiros, Rui Patrício, sócio da Morais Leitão e Paulo Saragoça da Matta, atual sócio da DLA Piper (foto em baixo). E ainda um membro da comunicação do Benfica.
João Medeiros, à data sócio da PLMJ, e dois advogados da sua equipa – Rui Costa Pereira e Inês de Almeida Costa, atualmente todos a exercer na Vieira de Almeida – foram vítimas daquele que viria a estar no banco dos arguidos no último ano. E constituíram-se como assistentes no processo. Rui Pinto, o hacker mais famoso de Portugal, foi esta segunda-feira condenado a quatro anos de pena de prisão, mas suspensa.
O coletivo de juízes sublinhou que o arguido teve mesmo a intenção de extorquir a Doyen e deu como provada a violação de correspondência à PLMJ, PGR e Federação Portuguesa de Futebol mas deu como não provados a violação de correspondência ao Sporting, Bruno de Carvalho e Jorge Jesus.
Assim, o hacker foi condenado por um crime de extorsão, cinco de acesso ilegítimo, amnistiado de 68 crimes de acesso indevido (por desconsiderar a agravação), amnistiado de 11 crimes de violação de correspondência simples e condenado por três crimes de violação de correspondência agravada. Foi ainda absolvido da sabotagem informática. A juíza condenou ainda o hacker a pagar 15 mil euros de indemnização a João Medeiros (bem como cerca de dois mil euros aos outros dois colegas). A Advocatus foi falar com o advogado mas que, aqui, fala apenas como (um dos) lesados.
Na segunda-feira esteve presente na leitura do acórdão que condenou Rui Pinto a 4 anos de prisão com pena suspensa. Do que ouviu, que comentários lhe merece o acórdão? Vai recorrer da decisão?
Em primeiro lugar gostaria de deixar bem claro que me permito comentar publicamente uma decisão judicial porque a minha posição no processo é de assistente e não de advogado, caso que só com a autorização da Ordem dos Advogados me poderia expressar publicamente.
Respondendo à sua questão. Há um aforisma judiciário que diz que “quem é advogado em causa própria tem um burro por cliente”. A circunstância de ter sido visado diretamente pela atuação criminosa retira-me objetividade técnica. Por conseguinte irei fazer exatamente o que o meu advogado, o dr. Tiago Rodrigues Bastos, pessoa que muito estimo e admiro, me disser para fazer.
Dito isto, não me consigo despir totalmente da circunstância de ter conhecimentos técnicos nesta matéria, como pessoa que exerce a sua atividade profissional precisamente na área penal e processual penal. E da audição por súmula do acórdão, cuja integralidade ainda não tive oportunidade de ler, há três aspetos que me despertaram a atenção e que irei pedir ao meu advogado para aprofundar.
Como é possível dizer-se que alguém está arrependido quando não assumiu as suas ações e imputou a terceiros factos que o Tribunal veio a considerar provados serem da sua autoria? Arrependimento seletivo não é arrependimento. Veja-se, aliás, o que o próprio já comentou publicamente, poucas horas após a leitura da decisão, dizendo que a luta continua ou que há partes descabidas na decisão…”
Quais, em concreto?
Em primeiro lugar há quase como que uma contradição entre o que é referido na fundamentação do acórdão e as razões que o Tribunal invocou para suspender a pena ao senhor Pinto. Na fundamentação o Tribunal nega, sem qualquer margem para dúvidas, o estatuto de denunciante ao arguido, refere que o dolo de atuação é direto e intenso, que não confessou os factos, mas apenas e só aqueles que lhe interessavam para sustentar a sua posição de justiceiro, alegando quanto aos outros terem sido terceiros a realizá-los (o que não convenceu o Tribunal) e acentuando serem prementes as necessidades de prevenção geral relativamente a este tipo de crimes e especial relativamente à personalidade do agente.
Chegada à justificação da opção por suspensão da pena, o Tribunal invoca a idade, o arrependimento e a colaboração do arguido com as autoridades. Com é possível dizer-se que alguém está arrependido quando não assumiu as suas ações e imputou a terceiros factos que o Tribunal veio a considerar provados serem da sua autoria? Arrependimento seletivo não é arrependimento. Veja-se, aliás, o que o próprio já comentou publicamente, poucas horas após a leitura da decisão, dizendo que a luta continua ou que há partes descabidas na decisão…
Em segundo lugar, do ponto de vista estritamente técnico, tenho dúvidas quanto ao fundamente invocado pelo Tribunal para desqualificar os 79 crimes que foram objeto de amnistia, desqualificação essa necessária para poder ser-lhe aplicada a Lei da Amnistia, já que esta não contempla crimes agravados. É uma questão a ver…
Em terceiro lugar, estranho que não haja sido feito depender a suspensão da pena da reparação aos lesados através do pagamento das indemnizações. Dito isto, reafirmo, apenas ouvi a leitura do acórdão por súmula. Pode ser que conste do texto do acórdão integral.
Falou há pouco da colaboração com as autoridades. O seu colega Francisco Teixeira da Mota, à saída do Tribunal, e na imprensa escrita, referindo-se ao acórdão e à colaboração do seu cliente (Rui Pinto) com as autoridades enaltece o seu “trabalho” e o interesse público da sua atuação. Que comentário lhe merece esta colaboração com as autoridades que está a ser levada a cabo por Rui Pinto?
Não condeno o senhor Rui Pinto por oferecer a sua colaboração às autoridades. O senhor Pinto encontra-se numa posição delicada, pelo que é humanamente compreensível que faça o que estiver ao seu alcance para melhorar a sua situação.
Da mesma forma, compreendo a estratégia inteligente do dr. Francisco Teixeira da Mota, em esquecer tudo o que foi dito em sede de fundamentação pelo Tribunal, e concentrar-se no soundbite do interesse público da atuação do seu cliente. O que para mim é absolutamente incompreensível é a passividade com que assistimos à alegação da existência de uma colaboração entre o senhor Rui Pinto, o senhor diretor nacional da Polícia Judiciária e um particular magistrado DCIAP.
Num país em que a legislação não prevê a existência de acordos extra processuais entre o Ministério Público e os arguidos, em que as autoridades judiciárias devem pautar a sua atuação por critérios de legalidade estrita, tenho dificuldade em compreender qual o conteúdo funcional dessa colaboração.
Qual acha que é então o conteúdo dessa colaboração?
Tendo em conta a atividade a que o senhor Pinto se dedica, apenas vejo duas possibilidades: ou a partilha com as autoridades da informação que previamente obteve por via criminosa ou a sua prestação de serviços futuros no sentido de obter informação usando do mesmo modo operandi. Qualquer das situações é muito grave! Vivemos num país com alguns tiques de bipolaridade.
Passamos semanas a discutir o beijo do Senhor Rubiales, o erro de arbitragem cometido no jogo A ou B, a expulsão deste ou daquele da casa dos segredos e assobiamos todos para o lado quando ouvimos que a nossa Polícia coopera com uma pessoa que tem por modo de vida aceder à informação de forma criminosa pretendendo obter do mesmo a chave de desencriptação dos dispositivos que lhe foram apreendidos! Mal comparando, é como se perante uma suspeita sobre um indivíduo relativamente ao qual a Polícia não tem indícios para obter um mandado de busca, fossem contratar o “Beto Mãozinhas” para ir ao cofre do suspeito buscar documentação!
Mas a situação é ainda mais grave! É que no exemplo dado, existe uma suspeita concreta que recai sobre uma determinada pessoa. No caso vertente não há uma suspeita concreta sobre determinada pessoa. É o vasculhar de informação sobre centenas de cidadãos ou empresas, o acesso a dados pessoais, porventura íntimos de pessoas, à procura de um ilícito eventualmente cometido por algumas das pessoas a quem a informação foi furtada. É um exemplo acabado de um direito penal do inimigo que encara cada cidadão como um potencial ou futuro criminoso. E dormimos todos tranquilamente. À cabeça só me ocorre o poema de Niemoller…
O que para mim é absolutamente incompreensível é a passividade com que assistimos à alegação da existência de uma colaboração entre o Senhor Rui Pinto, o Senhor Diretor Nacional da Polícia Judiciária e um particular Magistrado DCIAP (…). Tendo em conta a atividade a que o senhor Pinto se dedica, apenas vejo duas possibilidades (para a colaboração): ou a partilha com as autoridades da informação que previamente obteve por via criminosa ou a sua prestação de serviços futuros no sentido de obter informação usando do mesmo modo operandi. Qualquer das situações é muito grave!”
Rui Pinto assume-se como um denunciante (tese aliás defendida por personalidades como Ana Gomes). O que diz a isto?
Digo que o enganaram… Aliás se o senhor Rui Pinto esteve atento ontem à leitura por súmula do acórdão, e terá estado, deve ter-se apercebido do logro em que caiu. À luz da lei, o Denunciante deve ser uma pessoa pertencente à organização. Não um terceiro. Bem sei que há quem defenda a tese de que a letra da lei é demasiadamente restritiva e que deveria haver espaço para Denunciantes terceiros relativamente à organização. Pode-se discutir isso, mas não é o regime que vigora. De qualquer forma e mesmo os defensores desta dimensão mais ampla de denunciantes estão de acordo num ponto: o denunciante deve aceder à informação por forma legitima. Não é, manifestamente, o caso…
Disse que os 15 mil euros que recebeu de Rui Pinto irão para o IPO? Porquê?
Correção: eu não recebi nada! O senhor Rui Pinto foi condenado a pagar-me, o que é bem diferente, designadamente nos casos em que não se faz depender a suspensão da pena do pagamento da indemnização. Dito isto, se algum dia vier a receber a indemnização do senhor Rui Pinto, reafirmo, entregarei a totalidade do montante à ala pediátrica do IPO. Porquê? Porque a existência de um pedido de indemnização serve interesses reparadores e punitivos que vão além do valor facial da indemnização.
É a expressão do mal causado a uma vítima, tendo em conta a impossibilidade de reparação natural. Dito isto; não sou rico, vivo apenas do meu trabalho, mas felizmente ganho o suficiente para me sustentar a mim e à minha família e não preciso do dinheiro do senhor Rui Pinto. Pagava, aliás, 15.000 euros para não ter passado por isto! Já que tal não é possível, ao menos que toda esta malfada situação faça o bem de alguém.
Gostaria que me explicasse, de uma forma mais pessoal, de que forma é que Rui Pinto prejudicou a sua vida, em 2018?
Eu acho que a Filipa que é jornalista e cujas fontes que tem dependem da confiança que têm em si pode compreender a minha situação. Refiro-me concretamente à importância do sigilo profissional, que é a base do exercício da advocacia. Repare no seguinte: quando sou consultado por uma pessoa, ela expõe-me o seu assunto. Fá-lo abertamente porque como diz o povo, “ao padre e ao advogado diz-se tudo”. Veja agora a situação em que ficam as pessoas que depositaram em mim confiança, se o que disseram a seu advogado fica acessível ao mundo!
A par disto, que é o mais importante, as pessoas que passam muito tempo no escritório, como eu, tendem a tratar dos seus assuntos pessoais também por email. Não o deviam fazer. Mas fazem. E portanto no seu email acha-se uma panóplia de informação pessoal, extratos bancários, análises clínicas, enfim, um mundo de informação que é sua. Que é reservada. Que ninguém gosta de partilhar. Que ninguém tem o direito de saber. Quando, acriticamente, pegam no conteúdo de toda a sua caixa de correio e a colocam num local site acessível a toda a gente é, parafraseando o que disse senhor Rui Pinto em julgamento, uma canalhice.
Dito isto, a divulgação acrítica do conteúdo da minha caixa de correio acabou por ter menos efeitos nefastos do que aquilo que eu à data esperava. E porquê? Porque os jornalistas deste país se portaram exemplarmente e negaram-se, com exceção feita a um cavalheiro pertencente a um meio de comunicação supostamente respeitável, proceder à publicação de emails que haviam sido acedidos ilegalmente. Foram, devo dizer-lhe, absolutamente impecáveis e estou e estarei para sempre agradecido. Foi um exemplo de humanidade, integridade e deontologia profissional, que nunca esquecerei.
Como acha que a PLMJ lidou com a gestão de crise nesta fase?
Acho que dentro das circunstâncias lidou bem. Ao longo da minha vida profissional tenho acompanhado diversas situações deste género. As empresas têm a sua vocação. Ficam paralisadas. Não estão preparadas para enfrentar estas situações. Têm ótimos gestores, mas virados para o seu negócio. Têm boas equipas de comunicação, mas habituadas a divulgar os seus produtos.
Não há no mercado equipas pluridisciplinares especializadas em tratar situações de crise. Por isso as empresas que têm capacidade económica, numa situação de crise, vão ao mercado procurar a ajuda de consultores externos. Como não há uma gestão integrada do risco, pelo menos no início, que é o momento mais importante para serem tomadas medidas de fundo, há alguma descoordenação. Foi que se passou um pouco na PLMJ. Mas não por culpa de quem estava à frente dos destinos da sociedade, que fez o melhor que podia e sabia.
No email acha-se uma panóplia de informação pessoal, extratos bancários, análises clínicas, enfim, um mundo de informação que é sua. Que é reservada. Que ninguém gosta de partilhar. Que ninguém tem o direito de saber. Quando, acriticamente, pegam no conteúdo de toda a sua caixa de correio e a colocam num local/ site acessível a toda a gente é, parafraseando o que disse senhor Rui Pinto em julgamento, uma canalhice”.
A sua saída na PLMJ foi devido a este episódio?
Não. De forma alguma. Recebi à data dos meus sócios e dos meus colegas em geral, todo apoio, quer institucional, quer pessoal.
Passou a ter mais cuidado com o que escreve nos emails?
Não tanto no que escrevo. Mais na forma como utilizo o email. Deixei de usar o email profissional para tratar de assuntos pessoais e passei a privilegiar reuniões pessoais em lugar de trocar documentos escritos.
Que sentimentos têm quando pensa em Rui Pinto?
Passados estes anos não desejo mal ao senhor Rui Pinto, se é a isso que se refere. Acho que é uma vítima de si próprio e que foi objeto de aproveitamento por diversas pessoas, algumas com responsabilidades políticas, sociais e desportivas. É um jovem talentoso, que podia ter uma vida ótima e que vai ter uma vida difícil. Muito difícil. É pena. Só isso.
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“Portugal vive num mundo de bipolaridade”, diz João Medeiros, lesado de Rui Pinto
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