Portugal não precisa de uma reestruturação da dívida, tem condições para a pagar e não enfrenta um risco de segundo resgate. Palavras do chefe da missão do FMI.
É a segunda parte da entrevista com Subir Lall. Aqui falamos das contas públicas, da forma como o défice foi atingido este ano, daquilo que o FMI considera importante que se faça na frente orçamental e nos temas que merecem em Portugal opiniões opostas, como a reestruturação da dívida ou a necessidade de um segundo resgate.
As perspetivas de curto prazo melhoraram, a economia recuperou no terceiro trimestre e o objetivo do défice público vai ser atingido este ano mas os riscos que o FMI identificou em junho mantêm-se, alerta Subir Lall. Na frente orçamental é preciso fazer a reforma do Estado, enfrentar e resolver os dois mais importantes problemas do lado da despesa — os salários e as pensões — porque não se vai conseguir manter a estratégia deste ano durante muitos anos. Até pode ser possível repeti-la em 2017 mas haverá algum momento em que o investimento público terá de aumentar.
Portugal precisa apenas de um pequeno esforço adicional na redução do défice público, basicamente regressar ao excedente primário estrutural de 2014. Subir Lall faz uma analogia com a maratona. Já corremos 38 quilómetros, por isso vale a pena acabar a corrida, nem que seja a andar.
O líder da missão do FMI está convencido que Portugal tem condições para pagar a dívida pública sem qualquer reestruturação. Risco de segundo resgate? Não.
Considera que é preciso cortar nos salários dos funcionários públicos para reduzir o défice público?
Andamos a dizer há algum tempo que o que pensamos é que é necessária uma reforma fundamental de todo o setor público. O que não passa pela solução simplista de cortar salários de maneira geral. Temos que olhar para a composição do setor público. Em algumas áreas há funcionários a mais, mas noutras áreas, há provavelmente menos pessoas do que as necessárias. As pessoas podem trabalhar de forma dura e fazer horas extraordinárias por algum tempo, mas não sempre. E as funções públicas mudam ao longo do tempo. Isso significa também que é preciso uma diferenciação salarial, entre os que têm muitas e poucas habilitações. Para se ter uma administração pública melhor, é preciso pagar mais a pessoas altamente qualificadas. Para que as pessoas considerem atrativo o serviço público, as compensações têm de ser adequadas.
É necessária uma avaliação global dos serviços públicos e agora é um bom momento para o fazer. Porque não existem as pressões financeiras de 2010 e 2011. Pode haver uma visão mais profunda sobre qual é o tipo de serviço público que o país precisa e qual é o envelope orçamental para isso.
E tem algum compromisso do Governo de que fará este tipo avaliação?
Nós chegamos depois de o Orçamento para o próximo ano estar pronto e aprovado no Parlamento. Para ser sincero, não tivemos uma discussão, estivemos a dar as nossas visões sobre quais devem ser as prioridades urgentes. Mas vai levar tempo e temos de falar cuidadosamente.
Qual é a sua avaliação do orçamento 2017?
Os objetivos são apropriados, no sentido em que são muito ambiciosos. Mas, baseado na informação que temos até agora, é difícil ter uma visão clara do que será alcançado. Em termos de medidas específicas, até agora explicadas, não é claro para nós que o objetivo seja atingido. Consideramos que será necessário um esforço estrutural adicional para atingir o objetivo do défice público. As nossas perspetivas macroeconómicas não são muito diferentes das do Governo, tendo como referência as previsões que fizemos para este ano e o próximo.
O FMI está um pouco mais pessimista que o Governo para 2017…
Sim, um bocadinho mais. Mas isso não explica a diferença entre a nossa previsão para o défice público em 2017 [2,1%] e aquela que o Governo tem no Orçamento [1,6%]. Consideramos que é necessário um esforço estrutural adicional para atingir o objetivo do Governo. Este ano há, de qualquer forma, a hipótese de atingir o objetivo por via da redução de gastos em algumas categorias do orçamento, mesmo que estando elas orçamentadas. Temos que ter em conta a possibilidade de o mesmo se repetir em 2017. Mas a nossa visão é que, provavelmente, a melhor abordagem passa por reformas permanentes em vez de reagir aos desenvolvimentos da economia ao longo do ano para atingir os objetivos do défice público.
Andamos a dizer há algum tempo que é necessária uma reforma do sector público. O que não passa pela solução simplista de cortar salários de maneira geral. (…) E agora é um bom momento para a fazer porque não existem pressões financeiras.
Teve algum compromisso da parte do Governo de que farão reformas na segurança social?
A discussão sobre as pensões foi nos últimos dias e não tenho ainda a avaliação completa dessas reuniões. Mas existiram encontros em que o tema foi discutido de forma alargada.
Mas considera que a reforma do sistema de pensões é importante?
Sim. Essa tem sido a nossa visão desde há algum tempo. Há diferentes ‘stakeholders’ como os beneficiários das pensões, a despesa em geral e a população a trabalhar que está a descontar [para a reforma]. Tem que haver uma discussão sobre as pensões, para que todos possam chegar a um acordo sobre a reforma do sistema e sobre como é que o fardo será partilhado entre os diferentes ‘stakeholders’. É um tema que estamos a debater há anos. Como a população está a envelhecer, as pensões são uma parte importante da despesa pública.
Parece-me que ficou muito surpreendido com a evolução da economia portuguesa e das finanças públicas. Em junho estava muito pessimista. Como é que explica isto?
Temos que ter cuidado ao dizer que as perspetivas estão incorretas uma vez que um dos trimestres deste ano ainda não terminou. Para estabelecer um padrão, tem de se ter dados consistentes de vários trimestres. Estamos muito satisfeitos com os resultados da economia no terceiro trimestre. Mas não estamos ainda em posição de dizer que isso significa que as perspetivas económicas de médio prazo mudaram.
No curto prazo tudo está bem, mas está preocupado com o longo prazo?
Sim. A perspetiva para o curto prazo é mais agora mais equilibrada. Mas os riscos que detetamos em junho ainda existem todos. São riscos associados às vulnerabilidades colocadas pela dívida pública e privada, às incertezas no sistema bancário e ao facto de o investimento ainda continuar fraco.
Considera então que estamos perante uma recuperação cíclica e não sustentável?
Lembro que tivemos dois trimestres fracos e um trimestre forte. E lembre-se onde estávamos no início do ano em termos de previsões de crescimento, de toda a gente, desde o Governo no Orçamento a todas as instituições. Mesmo com o crescimento do terceiro trimestre, ainda estamos abaixo do que pensávamos no início do ano, só para pôr a questão em perspetiva. Temos de ter cuidado antes de dizer que estamos perante uma mudança duradoura nas perspetivas da economia. Nenhum economista responsável chegará a essa conclusão baseado apenas em dados de um trimestre.
Portugal precisa de um alívio na dívida?
Não. O nível da dívida é definitivamente grande, mas veja que as taxas de juro da dívida pública a dez anos estão abaixo dos 4%.
A perspectiva para o curto prazo é agora mais equilibrada. Mas os riscos que detectamos em junho ainda existem todos. São riscos associados às vulnerabilidades colocadas pela dívida pública e privada, às incertezas no sistema bancário e ao facto de um investimento ainda continuar fraco.
Quatro por cento é o vosso ‘benchmark’? A DBRS falou nos 4%.
Não temos um ‘benchmark’. [A sustentabilidade da dívida] depende de vários fatores como o crescimento, a inflação…É difícil apontar um número.
Mas a DBRS disse que 4% era a referência para decidir a alteração do ‘rating’ de Portugal…
Considero invulgar que as decisões de ‘rating’ sejam guiadas pelo que são as ‘yields’ no mercado. Normalmente, as decisões de ‘rating’ são independentes do que o mercado está a definir. Exatamente porque o ‘rating’ tem de olhar para os fundamentos da economia. Não percebo totalmente a lógica do argumento, de que são as yields que afetam os níveis de ‘rating’, mas deve ter a ver como o modelo que têm. Todos têm modelos diferentes.
Mas tinha dito que as taxas de juro estavam baixas …
O meu comentário foi sobre o passado. Se olhar para o ambiente financeiro, Portugal regista um superávite estrutural primário em 2014, no final do programa [da troika]. E se mantivermos esse nível de equilíbrio estrutural por uns quantos anos, o nível da dívida pública cai. A questão não é aumentar a consolidação todos os anos, mas sim manter no nível que tivemos em 2014. Isso será suficiente para, com um PIB de 2 a 3% por ano, reduzir a dívida no prazo de cinco a dez anos. A questão é que, pelas nossas estimativas, em 2015 e 2016, o superávite estrutural primário foi menor do que havia sido em 2014. O que é preciso agora é voltar àquele nível e então aumentá-lo ainda um pouco.
Espera que os saldos estruturais regressem ao que eram em 2014?
Em termos dos equilíbrios primários estruturais temos de regressar ao que eram em 2014, porque se perdeu isso em 2015 e 2016. É necessário um esforço estrutural adicional para chegar lá. Tem de ser feito um ajustamento pelo lado da despesa. Mais uma vez, é importante lembrar que Portugal fez um esforço de consolidação muito ambicioso durante três ou quatro anos, quando o programa começou. Isso foi muito útil. Muito do trabalho duro foi feito. Mas para que a dívida seja reduzida de forma visível todos os anos, daqui para a frente, é necessário algum esforço adicional.
Mas é politicamente muito difícil adotar medidas estruturais. Ouvimos essas mensagens na era da troika, que com as medidas estruturais o crescimento regressava e não regressou. Como é que vamos dizer às pessoas, que esperam ter melhores salários e rendimentos, que com essas medidas chegará o crescimento?
É uma questão muito difícil. Portugal enfrentou anos difíceis em 2010, 2011 e 2012. Foi muito difícil mas Portugal conseguiu fazê-lo e o prémio para isso é que hoje consegue financiar-se com juros muito mais baixos. Porque o ajustamento foi feito, o défice reduziu-se de forma rápida e Portugal pôde reganhar o acesso ao mercado.
Portugal enfrentou anos difíceis em 2010, 2011 e 2012. Foi muito difícil mas Portugal conseguiu fazê-lo e o prémio para isso é que hoje consegue financiar-se com juros muito mais baixos.
Mas o que é que isso significa para as pessoas? O que a população em geral sente é o rendimento no bolso.
Verdade. Mas se usar apenas a política orçamental para criar rendimento isso é temporário. Porque o dinheiro não é ilimitado. Alguém tem de pagar.
Está a dizer-me que a política que está a ser seguida por este Governo não é sustentável nem é aquela que nos trará maior crescimento?
Não. De forma alguma. Não é isso que estou a dizer. O que estou a dizer é que tivemos estabilidade macroeconómica, tivemos um crescimento trimestral encorajador, estão a ser desenvolvidos esforços para lidar com as questões do sistema financeiro. Mas aquilo de que precisamos são mais reformas estruturais e prosseguir o processo que foi iniciado há quatro ou cinco anos para aumentar o potencial de crescimento da economia. Como disse, um pequeno esforço estrutural adicional levaria a uma situação na qual a dívida pública continuaria a descer e o potencial de crescimento e a produtividade da economia aumentariam. Para ser muito claro. Foi isso que disse.
Existe o risco de uma interrupção brusca do fluxo de capitais para Portugal [como aconteceu em 2011]?
No cenário base é bastante difícil defender algo semelhante, porque agora há bastante liquidez nos mercados. De certa forma, o mundo é diferente do que era. Os bancos centrais são agora um ator importante nos mercados. Dito isto, a forma como as coisas mudam depende sempre da dimensão e da magnitude do choque que as provoca. Não sabemos qual será o choque externo. Nenhum país, a não ser que seja um país muito grande, está livre de uma interrupção abrupta na entrada de capitais. Mas é uma situação muito hipotética.
Voltando à questão do alívio da dívida. Como sabe, em Portugal, há algumas pessoas, mesmo no Governo, que pensam que Portugal precisa de uma reestruturação de dívida para crescer. Porque defende o contrário?
Porque, já o disse, tendo em conta a dimensão do esforço orçamental que já foi feito, especialmente durante o período do programa de ajustamento financeiro, é necessário um pequeno esforço adicional para chegar a um ponto em que não é necessário continuamente alterar a fasquia, e fazer mais e mais. É apenas fazer um pouco mais. Fazendo uma analogia com algo que me é querido, que é uma maratona. São 26,2 milhas (41 quilómetros) e já correu 24 milhas (38 quilómetros), mais vale terminar a corrida, mesmo que seja a andar. Da mesma forma, aqui, é necessário um esforço adicional muito pequeno para chegar a um ponto em que a dívida começará a descer por si. E, claro, se o crescimento subjacente for mais elevado – neste momento a nossa perspetiva é de 1,2% –, se aumentar para 1,5 ou para 2%, acontecerá ainda mais depressa. Mas mesmo com 1,2% e com a inflação a começar a exibir sinais positivos, o crescimento nominal do PIB será suficiente para a fazer descer a dívida. Portanto é perfeitamente possível conseguir fazê-lo. Na verdade, é bastante realista.
Portugal não precisa de outro resgate?
Não vejo que seja necessário. No cenário base e com uma correcta combinação de políticas estamos perante uma situação perfeitamente gerível.
Portanto, temos condições para pagara a dívida?
Sim, definitivamente sim.
Sabe que a maior parte das pessoas discorda. Até mesmo o primeiro-ministro disse há dias que espera que as regras da zona euro mudem após as eleições na Alemanha em setembro.
Isso é algo que ultrapassa as minhas competências para me pronunciar.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Subir Lall considera que Portugal consegue pagar a dívida
{{ noCommentsLabel }}