Há 10 anos, o Banco de Portugal resgatou o BES com a aplicação da medida de resolução. No dia a seguir, abriu portas o Novo Banco, com uma injeção de capital de 5 mil milhões de euros.
“O conselho de administração do Banco de Portugal deliberou hoje aplicar ao Banco Espírito Santo S.A. uma medida de resolução. A generalidade da atividade e do património do BES é transferida para um banco novo denominado Novo Banco, devidamente capitalizado e expurgado de ativos tóxicos. Fica inequivocamente afastada a hipótese de haver perdas para os depositantes“.
Há precisamente dez anos, Portugal conheceu um dos capítulos mais trágicos da sua história económica e financeira. Um dos maiores bancos do país teve de ser resgatado face ao risco de um colapso provocar uma disrupção generalizada em todo o sistema financeiro e danos incalculáveis na vida das famílias e empresas portuguesas.
No dia 3 de agosto de 2014, faltavam 15 minutos para as 23 horas desse domingo, quando Carlos Costa apareceu diante das televisões para anunciar ao país que o BES, como o conhecíamos, ia desaparecer.
No dia a seguir iria abrir portas uma instituição financeira chamada Novo Banco, devidamente capitalizada após uma injeção de cinco mil milhões de euros, com uma imprescindível ajuda dos contribuintes.
Para o banco mau foram transferidos os ativos considerados problemáticos, incluindo acionistas e credores subordinados que perderam todo o dinheiro.
Quem foi o responsável pela queda do BES? Havia alternativa à medida de resolução? E as autoridades falharam ao não prevenir o acidente?
Uma década depois, nada ficou como dantes, mas o tombo do histórico banco e também de um dos mais importantes grupos económicos continua com muitas perguntas por responder.
Ricardo Salgado vai ser condenado? Será que aprendemos a lição? E os contribuintes vão ser reembolsados?
Este é o quinto e último episódio da série “O fim do BES, dez anos depois”, o podcast do ECO sobre os cinco dias que contam os momentos finais do BES até à derradeira medida de resolução aplicada pelo Banco de Portugal a 3 de agosto de 2014.
BCE encosta Carlos Costa à parede
Na véspera de o BES apresentar os resultados, o Banco de Portugal já tinha uma ideia mais ou menos clara da dimensão da enorme dor de cabeça que aí vinha.
A 29 de julho de 2014, o supervisor enviou uma carta ao banco para que apresentasse, no prazo de dois dias, um plano de reforço de capital devidamente calendarizado e com compromissos firmes de investidores.
Quando o BES anunciou prejuízos de 3 mil e 500 mil milhões de euros no dia 30, os resultados não apanharam o governador Carlos Costa de surpresa, mas as perdas recorde desferiram um profundo golpe no capital do banco ao ponto de deixá-lo entre a vida e a morte.
De repente, era preciso muito dinheiro e com urgência para repor os rácios de solvabilidade que tinham descido perigosamente para 5%, abaixo do limite mínimo de 7%. Mas não havia muito tempo para um banco enfrentar uma crise de desconfiança sem precedentes e a perder depósitos a um ritmo alucinante.
Nesse dia 30, com o relógio a contar, o presidente do BES, Vítor Bento, foi à procura de soluções para salvar a instituição. Primeiro junto do Banco de Portugal e depois do Governo. Queria perceber qual seria a disponibilidade dos contribuintes para ajudar o banco caso não encontrasse investidores privados interessados em injetar dinheiro numa casa em chamas.
Só que Vítor Bento não ouviu a resposta que queria da ministra das Finanças, Maria Luís Albuquerque, como ambos contaram na comissão de inquérito ao BES.
Rapidamente, Vítor Bento percebeu que uma capitalização pública iria ser um processo incerto, no mínimo, complexo e moroso para a urgência do banco. A solução passaria pelos investidores privados, como grandes fundos de investimento ou outros bancos.
Mas o presidente do BES também sabia que não era em dois dias que conseguiria levar a cabo uma empreitada como aquela que o Banco de Portugal pretendia. E foi isso que o banco comunicou ao supervisor ao final da tarde do dia 31, apesar de haver potenciais interessados.
“Era materialmente impossível dar cumprimento até ao dia 31 daquilo que nos era pedido, não apenas porque eram dois dias, mas porque além desses dois dias, um desses dias foi passado quase todo na reunião do conselho de administração que aprovou as contas. Só no final da aprovação das contas é que foi possível saber a situação exata com que se iria partir. Em lado nenhum é possível fazer um plano com essa dimensão com o prazo de dois dias”, referiu Vítor Bento aos deputados.
"Era materialmente impossível dar cumprimento até ao dia 31 daquilo que nos era pedido, não apenas porque eram dois dias, mas porque além desses dois dias, um desses dias foi passado quase todo na reunião do conselho de administração que aprovou as contas. (…) Em lado nenhum é possível fazer um plano com essa dimensão com o prazo de dois dias.”
Se essa quinta-feira não estava a correr bem a Carlos Costa, o dia não terminaria sem receber a notícia mais indesejada de todas. Uma autêntica bomba atómica acertava no coração do BES em plena crise. Depois da hora de jantar, o telemóvel toca. Era do Banco Central Europeu (BCE).
Dizem-lhe para se preparar: no dia a seguir, o conselho de governadores iria discutir a suspensão do estatuto do BES como contraparte do banco central, com efeitos imediatos. Tal medida implicaria que o banco teria de devolver do dia para a noite a totalidade do seu crédito junto dos outros bancos centrais, num montante de 10 mil milhões de euros.
Muito provavelmente significaria o fim do BES, sem apelo nem agravo.
De repente, se havia urgência em resolver a crise do BES, o telefonema de Frankfurt fez questão de acelerar ainda mais todo o processo, para o bem e para o mal. Carlos Costa tinha menos de 15 horas e uma noite em claro para decidir o que fazer a seguir.
O que não tem remédio remediado está e, rapidamente, o governador chegou a uma decisão, porque a alternativa que restava seria desastrosa e com consequências imprevisíveis.
“O que estava no prato da balança era o risco de termos uma disrupção financeira muito grave no sistema, com perda de confiança dos depositantes, quebras de financiamento; ou do outro lado, fazer o que fizemos”, contou o governador no Parlamento.
Sob pressão dos semi-deuses de Frankfurt, Carlos Costa tinha de preparar um plano de resolução capaz de convencer os pares a alterar o que parecia já decidido. Pelas 11 horas da noite lá seguiu um e-mail para o BCE, mas o governador não dormiu descansado, como contou na comissão de inquérito:
“O meu e-mail foi enviado às 11 e tal da noite e foi reenviado às cinco da manhã, tal era a minha preocupação de que pudesse não chegar ao destino. Estava com a preocupação de que ele pudesse não ter sido em conta para efeitos de elaboração e convocatória da teleconferência. Depois, nesse dia de manhã, estivemos pura e simplesmente a organizar internamente aquela situação de ‘go, no go‘ porque estávamos dependentes da aceitação.”
O plano de resolução do BES estava preso por um detalhe importante, o BCE tinha de aceitar o adiamento da retirada do estatuto de contraparte para depois do fim de semana.
Apesar das reservas manifestadas por dois governadores, Carlos Costa saiu da reunião com o que pretendia. Agora, o futuro do BES estava nas mãos do Banco de Portugal, que tinha um fim de semana para executar uma operação inédita naquelas dimensões.
A fuga de informação
Por esta altura, apenas um grupo muito restrito de pessoas sabia o que ia acontecer ao BES no fim de semana. Nem o presidente do banco, o governo e os outros reguladores estavam a par das decisões tomadas em Frankfurt. Só mais tarde foram informados por Carlos Costa.
Mas, depois do almoço, o BES começou a registar um comportamento estranho na bolsa, com muitas ações a trocarem de mãos e a um preço cada vez mais baixo.
Muitos investidores apressaram-se a vender os títulos do banco de forma massiva e com grande desconto, uma mudança de comportamento que levantou muitas suspeitas, como explicou Carlos Tavares, presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, na comissão de inquérito.
“Basta olhar para a negociação e ver os gráficos da negociação, as quantidades e os preços que aconteceram nesses últimos dois dias, para nós termos — já o disse, não me custa nada — a suspeita de que havia informação assimétrica no mercado“, contou. “Vimos de facto alguns investidores a desinvestir massivamente, e muitos investidores a investir, estavam a comprar a bom preço.”
Pouco depois das 15h, a pressão vendedora sobre as ações intensificou-se. O BES caiu a pique na bolsa para dez cêntimos por ação. Tocaram os alarmes no Banco de Portugal.
A informação de que o supervisor se preparava para resolver o BES aparentemente já tinha chegado aos ouvidos de mais gente, com acesso privilegiado a fontes mais bem posicionadas.
Temendo uma fuga de informação, Carlos Costa ligou a Carlos Tavares, que se encontrava de férias, a pedir com urgência para suspender a negociação das ações do BES.
Quem comprou ações do BES naquela tarde de sexta-feira a pensar que tinha feito o negócio do século, mal sabia que na segunda-feira iriam valer zero.
O fim de semana da resolução
No Banco de Portugal, Carlos Costa começou a reunir as suas tropas para executar a operação da medida de resolução do banco em pouco mais de 48 horas e que iria sacrificar os acionistas e os credores.
Cerca de 60 trabalhadores foram destacados. Para muitos deles foi um agosto sem as férias de verão habituais.
À noite, Carlos Costa comunicou a Vítor Bento que se encontrava em curso uma intervenção do Banco de Portugal no BES, explicando-lhe o que iria acontecer no fim de semana: o banco bom seria um banco de transição, seria uma instituição a prazo e a viver em cima da corda bamba, não ia ter uma vida normal como os outros. Foi isso que os advogados do banco explicaram já no sábado.
Vítor Bento e os outros dois administradores, João Moreira Rato e José Honório, consideraram então que o trabalho à frente do BES tinha terminado e não queriam continuar quando as portas do banco reabrissem na segunda de manhã.
Carlos Costa acabou por convencê-los a ficar e o próprio Vítor Bento percebeu que aquele momento ia definir o futuro do banco.
“Seria muito difícil para mim, mesmo que o projeto profissional não fosse interessante, que naquele momento preciso eu pudesse dizer que não. Sem falsas pretensões, reconheço que poderia criar uma dificuldade muito grande à própria aplicação da medida na segunda-feira, dado que estamos a falar de um período apertadíssimo, não dá para andar a falar com pessoas e nem todas as caras servem naquele momento”, disse.
"Seria muito difícil para mim, mesmo que o projeto profissional não fosse interessante, que naquele momento preciso eu pudesse dizer que não. Sem falsas pretensões, reconheço que poderia criar uma dificuldade muito grande à própria aplicação da medida na segunda-feira, dado que estamos a falar de um período apertadíssimo, não dá para andar a falar com pessoas e nem todas as caras servem naquele momento.”
No sábado à tarde, as equipas do BES juntaram-se aos técnicos do Banco de Portugal no sentido de ajudar com a prestação de informação e agilizar todo o processo desde o inventário de todo o património até à separação dos ativos e passivos bons e maus do banco.
Do lado do supervisor também havia que gerir a informação com as outras autoridades sobre o desenvolvimento dos trabalhos. Só no sábado é que a CMVM e o Instituto de Seguros de Portugal foram informados da medida de resolução. Governo, Comissão Europeia e Banco Central Europeu foram mantidos a par de tudo que foi acontecendo durante o fim de semana, aquilo que o governador chamou de “exercício de sincronização de peças em cima do arame”.
No domingo, ao final da tarde, uma dessas peças ia emperrando todo o processo.
Este episódio foi contado pelo governador anos mais tarde na comissão de inquérito ao Novobanco.
Apesar do último percalço, tudo acabou por se resolver.
Às 20 horas, enquanto os portugueses jantavam, o conselho de administração do Banco de Portugal aprovou finalmente a medida de resolução numa reunião extraordinária que foi uma formalidade depois de tudo o que acontecera nas 72 horas anteriores.
Cerca de três horas depois, às 22h45, Carlos Costa deu a conhecer ao país a decisão através de um longo e aguardado discurso que ficou para a história.
Dez anos depois, o que mudou?
A queda do banco deixou um rastro de destruição.
No processo de insolvência do BES mau foram reconhecidos cinco mil credores que reclamam créditos num valor que supera os cinco mil milhões de euros. Mas o dinheiro que sobrará da massa insolvente, cerca de 200 milhões, já tem destino: o Fundo de Resolução
Em relação ao Novo Banco, resistiu à pressão das regras de Bruxelas, sobreviveu, mas a muito custo. Além dos cinco mil milhões injetados em 2014, o banco teve de pedir mais três mil e 400 milhões ao Fundo de Resolução para limpar o legado deixado por Ricardo Salgado, nomeadamente empréstimos ruinosos que provocaram perdas milionárias.
Após ter comprado o Novo Banco em 2017, a troco de mil milhões de euros, os americanos da Lone Star perspetivam agora um bom encaixe financeiro com a venda da instituição que se encontra agora estabilizada.
Para o Fundo de Resolução as contas são outras. Tem uma dívida de sete mil e 500 milhões de euros para pagar ao Estado e aos bancos nas próximas décadas por conta dos resgates ao BES e depois ao Banif em 2015.
Quanto a Ricardo Salgado, o principal visado nos processos relacionados com a queda do BES, ainda continua a contas com a Justiça. O antigo banqueiro já foi condenado pelo Banco de Portugal e CMVM em alguns processos, mas o principal — em que o Ministério Público o acusa de corrupção, associação criminosa, num total de 65 crimes — só agora parece encaminhado para um desfecho: começa a ser julgado em outubro.
O BES caiu há dez anos, mas o legado da resolução vai continuar a pesar na vida do país durante muito tempo.
O FIM DO BES, DEZ ANOS DEPOIS
Passam dez anos sobre o colapso do maior grupo financeiro português. São cinco episódios com os cinco dias decisivos do fim do BES.
#1. Como perder mil milhões em dois meses 11 de junho
#2. O fim da Era Salgado 20 de junho
#3. Rei morto, rei posto 14 de julho
#4. O buraco de 3,5 mil milhões 30 de julho
#5. O dia da capitulação 3 de agosto
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#5. O dia da capitulação
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