Com a abertura dos tribunais, várias são os problemas sentidos pelos profissionais do setor. Falta de equipamentos de proteção e avarias nos dispensadores de gel são algumas das falhas apontadas.
Com a reabertura dos tribunais face à pandemia Covid-19 -que durante cerca de três meses, à exceção dos processos urgentes, estiveram parados – as diligências processuais acabaram por ser repostas para os métodos tradicionais e foram adotadas medidas de segurança de forma a conter a propagação do vírus. Fornecimento de equipamentos de proteção, o uso de máscara, desinfeção de mãos e manutenção da distância de segurança entre as pessoas, foram algum dos pontos instituídos.
“As medidas foram exclusivamente o fornecimento de equipamentos de proteção a magistrados e funcionários e no estabelecimento de umas orientações muito defeituosas e em grande parte inexequíveis, sem ouvir a Ordem dos Advogados, razão pela qual esta teve oportunidade de denunciar publicamente a grave situação que se está a passar nos tribunais, em termos de risco de infeção pelo coronavírus”, explica Luís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Advogados (OA), à Advocatus.
Basta lembrar que, apesar da proibição de ajuntamentos com mais de dez pessoas, anunciada pelo primeiro-ministro António Costa para a área metropolitana de Lisboa, os processos com grande audiência, quer na equipa de advogados, jornalistas e número de arguidos mantiveram-se. Na instrução da Operação Marquês, mais de 30 pessoas se concentraram nas audiências da semana passada. Contactado pelo ECO/Advocatus, o Conselho Superior da Magistratura (CSM) não se quis pronunciar relativamente a uma eventual mudança dessas regras.
O líder dos mais de 33 mil advogados considera que as medidas de segurança não estão a funcionar e que os profissionais se têm queixado de que não se sentem seguros. “Temos tido imensas queixas de receio pela falta de segurança, receio esse agravado pelas sucessivas notícias de vários casos de contaminação nos tribunais”, acrescenta.
Rui Patrício, sócio da Morais Leitão, assegurou à Advocatus que se sente seguro, apesar de não ter conhecimento da realidade de todos os tribunais. Posição partilhada por Francisco Proença de Carvalho, sócio da Uría Menéndez-Proença de Carvalho, que refere que todos os tribunais têm condições diferentes. Ambos advogados que têm estado presentes na instrução do processo da Operação Marquês, que decorre no Campus de Justiça, em Lisboa.
“Ninguém se pode sentir totalmente seguro perante o cenário de pandemia que infelizmente temos vivido, no entanto, temos que continuar a trabalhar para que a Justiça – pilar fundamental do nosso Estado de Direito – não pare. Creio que há um esforço coletivo do setor e há sentido de responsabilidade para que seja possível a justiça funcionar com a maior segurança possível em termos de saúde pública”, explica o sócio da Uría Menéndez-Proença de Carvalho, advogado de Ricardo Salgado.
Para Paulo Saragoça da Matta, sócio fundador da Saragoça da Matta & Silveiro de Barros, constatou várias medidas adotadas nos tribunais criminais de Lisboa. Este advogado é também um dos (muitos) da Operação Marquês.
“O distanciamento parece-me estar a tentar ser garantido, pelo menos em relação aos funcionários. Já em relação aos utentes, sejam eles testemunhas, arguidos, defensores, advogados, partes, etc., é claramente deficiente. Como inexistente é, nos tribunais, incluindo aqui para este efeito/diap/dciap e serviços/órgãos de investigação criminal, por mim visitados a disponibilização ao público de gel desinfetante, o que seria fundamental. Aliás, no que ao gel desinfetante diz respeito, chega a ser caricato que, nos poucos sítios onde existem dispensadores de gel os mesmos estão avariados”, refere o advogado.
Em Lisboa, no Campus de Lisboa, porém, algumas mudanças são óbvias. Deixaram de existir as filas para o registo, na entrada, só podendo estar duas pessoas de cada vez no interior do tribunal, junto ao balcão e com alguns metros de distância (assinalados no chão). Todos são obrigados a desinfetar as mãos com álcool, ao entrar no Campus e, posteriormente, ao entrar na própria sala de audiência. Nas máquinas que usualmente só servem bebidas e pequenos snacks, passaram a existir máscaras e frascos de álcool para venda. E, finalmente, dentro da sala de audiência todos, à exceção do magistrado judicial, são obrigados a usar máscara. No caso concreto da Operação Marquês, o juiz Ivo Rosa abriu uma exceção diária aos advogados que, no momento, estavam a alegar. Por uma questão de conforto, foram autorizados a retirar a máscara.
Finalmente, à entrada, deixou de haver a vistoria às malas na entrada, por parte dos seguranças.
Paulo Saragoça da Matta constata ainda que a “manutenção de alguns procedimentos que parecem desaconselháveis face à implementação de medidas de segurança e prevenção considerando que em alguns serviços/órgãos de policia criminal, o controlo dos acessos continua a impor um excessivo contacto e manuseio de objetos comuns, na PJ em Lisboa a bandeja em que se colocam objetos pessoais para passar no equipamento de scaneamento é usada sucessivamente para todas as pessoas sem lavagem intermédia, as cadeiras de espera não têm desinfeção especial, e depois há medidas absurdas se forem cadeiras de barbeiro”.
Deste modo, o sócio fundador da Saragoça da Matta & Silveiro de Barros, afirma que se sentiria mais seguro se “não tivesse que ir a diligências jurisdicionais, de todo”. “Positivamente verifica-se uma diminuição do número de presentes nas salas de audiência. No entanto, o sentimento de segurança é somente aquele que resulta da utilização dos equipamentos individuais de segurança e prevenção dos próprios intervenientes”, acrescenta.
À Advocatus os advogados consideram que existem aspetos a melhorar, mas as medidas já adotadas são adequadas. “Considero essencial que muitas diligências sejam presenciais. Em particular, no campo da justiça criminal a imediação é um princípio fundamental para julgamentos justos. No entanto, é necessário continuarmos a investir na melhoria das condições tecnológicas dos tribunais e da tramitação dos processos para que algumas diligências ‘mais técnicas’ possam ser realizadas à distância”, assegura Francisco Proença de Carvalho.
“É absolutamente necessário que os tribunais forneçam meios de proteção aos advogados e testemunhas que lá se deslocam e não apenas aos magistrados e funcionários. É por outro lado necessário que as salas de audiências sejam adaptadas para que a distância social seja respeitada, o que em muitos casos não sucede. Por outro lado, já há muito que deveria ter sido abandonada a absurda exigência de que os advogados que se deslocam ao tribunal tenham que digitar o seu número de cédula numa máquina de senhas que só é desinfetada de hora a hora, arriscando-se a que inúmeros advogados seja contaminadas apenas para se cumprirem regras burocráticas”, refere à Advocatus, Luís Menezes Leitão.
OA cria meios para receber queixas dos advogados
Desde que o regresso aos tribunais, que a OA tem recebido várias queixas de advogados que se sentem em risco pelas deficientes condições de segurança com que se deparam nos tribunais. Entre os problemas sentidos pelos profissionais está a deficiente configuração das salas de audiências, que não permitem o distanciamento, a falta de ventilação e de desinfeção das salas, ausência de gel desinfetante, o não fornecimento de máscaras de proteção à entrada, colocação de vidros de proteção nas secretarias, que apenas cobrem uma parte do espaço, sendo que alguns funcionários judiciais se apresentam sem máscara.
“Para além disso, os advogados queixam-se especialmente de não estar a ser respeitado o seu direito de acesso aos tribunais, com impedimentos de entrada antes da hora, e o desrespeito pela prioridade no atendimento a que têm direito nas secretarias judiciais. Muitos advogados têm sido colocados, nuns casos por determinação do juiz do processo, noutros por orientação de alguns juízes-presidentes de Comarca, à espera à porta dos tribunais para poderem entrar. Tal representa um enorme risco para esses colegas, uma vez que gera aglomerações de pessoas à entrada dos tribunais, sendo também altamente prejudicial para a sua saúde por os obrigar a esperar ao sol, em lugar de se dirigirem às salas de advogados que todos os tribunais devem ter”, explicou o bastonário da OA.
Face às queixas constantes, a Ordem criou um e-mail de forma a reunir e recolher as mesmas, o tribunal.inseguro@oa.pt. “Desde então recebemos mais de trinta queixas, o que é significativo, uma vez que muito poucas diligências foram agendadas desde que se determinou a reabertura dos Tribunais”, conta Luís Menezes Leitão.
Depois de receberem as queixas, a OA tratam das mesmas consoante o aspeto que é referenciado pelos advogados. Caso as queixas resultarem de deficiência dos serviços de higiene nos tribunais, apresentam participação aos juízes-presidentes das Comarcas. Mas se as mesmas resultarem de despachos judiciais ou de orientações dos juízes-presidentes, reclamam ao Conselho Superior de Magistratura.
“Damos igualmente conhecimento ao Ministério da Justiça, mas até agora não temos visto da parte do mesmo qualquer preocupação com os graves condições de segurança e trabalho atualmente existentes nos tribunais“, acrescenta o bastonário.
Ministério da Justiça dá maior atenção aos magistrados
Depois de uma desaceleração na área da justiça, imposta pelo Covid-19, a postura adotada pelo ministério da Justiça (MJ) divide opiniões. Mas uma coisa é certa, nos testemunhos recolhidos pelo ECO/Advocatus: houve uma maior preocupação com os magistrados do que com os restantes.
“Posso dizer que me parece que a situação enfrentada não foi fácil, e ainda não é, longe disso, e há sempre isto ou aquilo que se pode criticar ou melhorar, mas também é fácil fazer o ‘totobola à segunda-feira’ ou ser ‘treinador de bancada’, e não me coloco nessa posição. Por outro lado, é bom não esquecer que o funcionamento, melhor ou pior, do sistema de justiça, incluindo em tempos de pandemia, não depende só, nem aliás principalmente, do MJ, depende de muitos intervenientes, e em última análise de todos nós, contribuindo construtivamente, com responsabilidade e com atitudes concretas”, refere Rui Patrício à Advocatus.
Já Francisco Proença de Carvalho refere que os tempos atuais são complexos e inimagináveis e que ninguém estava preparado para uma pandemia. “Penso que o Governo esteve bem na reação rápida inicial no sentido de suspensão dos prazos e de diligências, entendendo que o mais importante era conter a propagação do vírus e dar alguma segurança jurídica. Pelo contrário, creio que esteve mais errático no processo de ‘desconfinamento judicial'”, nota.
Para o sócio da Uría Menéndez-Proença de Carvalho, a retoma dos prazos judiciais demorou demasiado tempo e a legislação aprovada pode gerar algumas dificuldades de interpretação. “Creio também que faria sentido reduzir as férias judiciais apenas ao mês de agosto, pois é necessário fazermos todos os esforços para recuperar o tempo perdido e este ano passaremos demasiado tempo em regime de férias judiciais. No entanto, como disse, em face da enorme complexidade do momento em que vivemos, seria impossível obter soluções perfeitas e parece-me que no cômputo geral as decisões foram razoavelmente acertadas”, acrescenta.
“A postura do MJ caracteriza-se por haver clara e óbvia preocupação com os seus funcionários e com os senhores magistrados, claramente, o que é louvável. Infelizmente esquece que magistrados e funcionários judiciais não são os únicos que têm de ser protegidos, tal como nos hospitais não se protegem só funcionários e médicos/enfermeiros. A situação é exatamente igual. Com efeito, os advogados são, por agora e enquanto a Constituição não for alterada, insubstituíveis de participação na administração da Justiça. A partir do momento em que são totalmente desconsiderados os advogados nas preocupações do MJ, afigura-se-me linear que a postura não foi correta”, assegura Paulo Saragoça da Matta.
Saragoça da Matta refere ainda que em abstrato está a ser transmitida uma imagem clara à sociedade: “se alguém vai a um hospital sem máscara, o hospital providencia-lhe uma, pois essa pessoa tem direito a aceder à saúde. Se um particular ou um advogado for a um Tribunal sem máscara, pura e simplesmente não entra, o que significa que é irrelevante para a Justiça que a parte tenha direito de aceder à justiça, e até obrigação, por exemplo, se for testemunha, e o advogado idem”.
Já Luís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Advogados, refere que a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, apenas se preocupou em ouvir e proteger os magistrados e descurou a proteção dos advogados, testemunhas e utentes da justiça. “A estratégia do Ministério foi, por isso, insistir em julgamentos à distância, que se já tinha demonstrado não funcionarem, e quando o Parlamento optou pelos julgamentos presenciais, os tribunais não estavam e continuam a não estar preparados para os realizar. Não admira, por isso, as enormes dificuldades e os receios com que os advogados se confrontam todos os dias nos tribunais”, nota.
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Covid-19 e tribunais: “Há uma maior preocupação com os magistrados do que com os restantes”
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