2020 ameaça ficar para a História como o ano em que o surto generalizado de coronavírus tirou o tapete à luta contra as alterações climáticas.
Sim, o consumo de petróleo e carvão está a cair a pique e as emissões poluentes parecem estar a recuar temporariamente. Por cima dos países mais afetados, como a China e a Itália, os satélites confirmam mesmo níveis substancialmente mais baixos de poluição atmosférica. Ainda assim, não são boas notícias. Bruxelas garante que mantém o empenho em cumprir as metas do Green Deal, mas as preocupações ambientais foram destronadas do topo da lista de prioridades da União Europeia, que à data é o epicentro da pandemia mundial de Covid-19.
A economia global caminha a passos largos para a recessão e os futuros planos para a sua recuperação certamente acarretarão uma nova subida nas emissões de gases poluentes. 2020 ameaça agora ficar para a História como o ano em que o surto generalizado de coronavírus tirou o tapete à luta contra as alterações climáticas.
Do petróleo aos plásticos, do CO2 às renováveis, conheça os principais impactos da pandemia.
Consumo de petróleo e carvão em queda
Aviões, carros, fábricas, tudo está a abrandar radicalmente, um pouco por todo o mundo. Resultado: a procura por petróleo está em queda livre e o seu preço também. Em mínimos históricos, o barril de petróleo chegou mesmo a ficar abaixo da marca dos 30 dólares. De acordo com as previsões do banco de investimento Goldman Sachs, a procura de petróleo vai contrair em mais de quatro milhões de barris por dia, todos os meses, entre fevereiro e abril, pelo menos. Já a gestora de fundos privados Andurand é ainda mais pessimista e estima que a procura pode mesmo cair até 10 milhões de barris por dia (10% da procura global) no primeiro trimestre, pelo menos.
Em fevereiro, no pico do surto na China, a procura de petróleo caiu 20% – cerca de três milhões de barris por dia. Juntos, Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Espanha, Reino Unido e Canadá consomem 31 milhões de barris de petróleo diariamente, o que poderá significar uma quebra na procura de seis milhões de barris a cada dia que passa.
Mas há previsões mais prudentes. No início de março, a Agência Internacional de Energia previu que em 2020 serão consumidos menos 90.000 barris de petróleo por dia em relação ao ano passado, não ultrapassando os 99,9 milhões de barris por dia.
Já de acordo com uma análise do portal “Carbon Brief”, a doença levou a que nos primeiros meses do ano a produção de carvão na China tenha caído 29% e o consumo deste combustível fóssil nas fábricas chinesas tenha também caído 36%. Já a capacidade de refinar petróleo foi reduzida em 34%.
Menos poluição no ar?
Devido a esta quebra no consumo de petróleo, no primeiro trimestre de 2020, estima-se uma redução de emissões de gases poluentes calculada em 9,6 milhões de toneladas. Juntando o abrandamento do consumo de carvão, as estimativas indicam que as emissões mundiais de CO2 podem reduzir-se este ano em cerca de 7%, um valor próximo do que o planeta devia atingir em 2020 com os esforços dos países para cumprir o Acordo de Paris sobre alterações climáticas.
Depois de o mesmo fenómeno já ter ter sido registado na China, os satélites da Agência Espacial Europeia registaram agora sobre Itália (sobretudo no norte do país) uma queda abrupta nos níveis de poluição, sobretudo nas emissões de dióxido de azoto.
“O declínio das emissões de dióxido de azoto sobre o vale do Pó, no norte da Itália, é particularmente evidente. Estamos muito confiantes de que a redução nas emissões que podemos observar coincide com o bloqueio na Itália, causando menos tráfego e atividades industriais”, destacou Claus Zehner, director da missão do Sentinel-5P, em comunicado.
O mesmo aconteceu na China, onde satélites da NASA e da ESA registaram em fevereiro quedas significativas na presença de dióxido de azoto sobre o país. Também aqui a responsabilidade é do coronavírus, que fechou fábricas e fez abrandar a economia.
Lauri Myllyvirta, investigador do Centre for Research on Energy and Clean Air (CREA), uma organização independente de pesquisa com sede nos Estados Unidos, concluiu que o encerramento forçado de fábricas e a redução de voos na China para conter a propagação do coronavírus resultou numa queda temporária de pelo menos 25% nas emissões de dióxido de carbono da segunda maior economia do mundo (equivalente a uma redução de 6% a nível global). Isto tendo em conta que as medidas para conter o coronavírus resultaram em reduções de 15 a 40% na atividade industrial em todos os setores-chave.
A sua pesquisa indica que, no espaço de poucas semanas, a China emitiu menos 100 milhões de toneladas de dióxido de carbono, face ao mesmo período do ano passado, um volume que equivale ao CO2 que a cidade de Nova Iorque emite num ano, por exemplo.
Planos para recuperar economia vão fazer disparar emissões
Alguns analistas temem o “reverso da medalha”, ou seja, uma explosão das emissões poluentes na China quando o Governo de Pequim puser em prática medidas destinadas a estimular a economia, que vão acabar por reverter a baixa no consumo de combustíveis fósseis e, consequentemente, aumentar a poluição, como aconteceu após a crise financeira global de 2015.
“Esta redução nas emissões de CO2 da China não é permanente. E não será visível nas emissões totais anuais”, disse Joeri Rogelj, especialista em mudanças climáticas da universidade Imperial College, de Londres, citado pela BBC. Este mês os satélites estão já a detetar mais gases poluentes sobre a China e o consumo de carvão está a aumentar gradualmente.
Por isso mesmo, Lauri Myllyvirta, investigador do Centre for Research on Energy and Clean Air (CREA), tem a mesma opinião. “As futuras medidas de estímulo à economia do Governo chinês poderão atirar por terra as reduções temporárias nas emissões poluentes”. Em marcha está já um mega plano de investimento de milhares de milhões de dólares para projetos de desenvolvimento na China, incluindo gasodutos e centrais nucleares.
O mesmo aconteceu após a crise económica de 2008, quando o país investiu 580 mil milhões de dólares para recuperar a economia, aumentando exponencialmente as emissões.
Com o coronavírus a afetar todo o mundo, é esperado que outras grandes economias mundiais deem prioridade ao desenvolvimento, em vez de travarem as alterações climáticas.
Cimeiras do Clima adiadas, metas por cumprir?
As economias mundiais podem até estar a abrandar, mas os efeitos da crise climática não. Os danos nos ecossistemas são cada vez mais rápidos e permanentes. Só em 2019, revela a World Meteorological Organization, 22 milhões de pessoas foram deslocadas devido a eventos climáticos extremos, muito acima dos 17,2 milhões em 2018.
Para já, e por causa do coronavírus, todos os encontros climáticos bilaterais estão suspensos, como o que deveria acontecer entre os EUA e a China, no final de março. Também as Nações Unidas estão em pausa, até finais de abril. O problema é que estes encontros são fundamentais para preparar o caminho para a Cimeira do Clima COP26, agendada para novembro, em Glasgow, isto depois do fiasco da anterior, em Madrid, no final de 2019. Até agora, apenas quatro países apresentaram os seus planos de combate às emissões poluentes, no âmbito dos Acordos de Paris.
Epicentro da pandemia na Europa ameaça Green Deal?
Com a Comissão Europeia completamente focada neste momento em mitigar o impacto económico do surto do novo vírus, tendo já anunciado um plano de 37 mil milhões de euros, a presidente Ursula Von der Leyen garantiu, no entanto, que o seu Executivo comunitário continua empenhado no Green Deal e em tornar a Europa no primeiro continente neutro em carbono até 2050.
“Não podemos ignorar o se passa a nível global. A emergência climática não desapareceu”, disse o comissário europeu para o Ambiente, Virginijus Sinkevicius, em declarações à Bloomberg TV.
Ainda assim, o Green Deal já não está no topo da agenda de Bruxelas. “Vejo riscos a curto prazo, mas também oportunidades. O principal risco é que, para responderem à crise viral, os governos têm de aumentar os seus gastos e desviar recursos que seriam destinados à descarbonização da economia”, argumenta Simone Tagliapietra, analista do think-tank Bruegel, citada pela Bloomberg. Quanto às oportunidades, “quando os governos estiverem a desenhar os seus planos de recuperação económica, devem ter em consideração as metas do Green Deal como parte da solução”.
Impacto na energia eólica ainda por apurar
De acordo com a análise da WindEurope, ainda é demasiado cedo para avaliar ao certo o real impacto na expansão da capacidade eólica na Europa. Neste momento a indústria eólica europeia tem projetos a decorrer em mais e 80 países do mundo, com as empresas a depender das cadeias de abastecimento não só ao nível da Europa mas também a globalmente. “À medida que o surto de Covid-19 aumenta, a industria eólica europeia sentirá também o impacto da quebra no comércio mundial”, atesta a WindEurope.
“Assistiremos a atrasos no desenvolvimento de projetos de novas centrais eólicas, o que poderá fazer com que os promotores falhem os prazos dos leilões e sofram penalizações monetárias. Por isso, os governos devem ser flexíveis na aplicação das regras. Se os leilões de renováveis em curso não tiverem resposta suficiente porque os promotores não conseguem apresentar as suas propostas, os governos devem atribuir a capacidade que conseguirem e guardarem a restante para uma segunda fase”, defende Giles Dickson, CEO da WindEurope.
Mobilidade elétrica em risco?
A pandemia decretada por causa do novo coronavírus apresenta riscos para o setor, mas não mudará a trajetória da mobilidade elétrica a longo prazo, dizem os analistas ouvidos pela Bloomberg. O maior perigo para já é o efeito dominó: a economia em contração vai afetar o mercado automóvel no geral e as vendas de carros elétricos em particular, apesar do boom registado nós últimos tempos.
“Neste momento as pessoas não estão preocupadas em comprar carros, quanto mais elétricos”, diz Ram Chandrasekaran, analista da consultora Wood Mackenzie. Em janeiro e fevereiro, as vendas de automóveis caíram 44% na China. Apesar de serem muito sensíveis a estas tendências globais do mercado automóvel, as vendas de elétricos na Europa ainda deverão crescer 50% em 2020 face ao ano passado. Sem exceção, todas as construtoras estão a investir milhões em novos modelos elétricos e não preveem mudar as suas estratégias de descarbonização.
Febre do plástico volta a atacar
O mundo está numa guerra contra o plástico, sobretudo aquele que é de uso único, mas com o coronavírus esta é uma tendência que pode ficar em stand-by. Senão veja-se: apenas uma semana depois de ter sido reportado o primeiro caso de Covid-19 nos Estados Unidos sem qualquer ligação a países estrangeiros, a cadeia Starbucks voltou a proibir os clientes de usarem os seus próprios recipientes reutilizáveis para se abastecerem de café nas lojas da marca, reporta a Bloomberg. Outras cadeias, como a Dunkin’ Donuts, seguiram o exemplo. Ou seja, os copos de plástico descartável podem voltar em força. Em causa está a higiene alimentar por causa do novo coronavírus.
O mesmo se aplica ao uso exponencial – ainda que temporário – de luvas cirúrgicas descartáveis, máscaras de proteção facial, e tantos outros materiais médicos de uso único nos hospitais: seringas, acessos intravenosos, cateteres, máscaras de oxigénio, entre outros.
Aviação em stress, promete continuar a combater pegada carbónica
As companhias aéreas estão a ser severamente afetadas pela pandemia de Covid-19. Com fronteiras fechadas e países a interditar voos de e para algumas partes do globo, são aos milhares os voos cancelados. A alemã Lufthansa anunciou uma redução de 70%, enquanto a American Arlines cortou 75% nos voos de longo curso. Já a Delta Airlines tem pelo menos 300 aviões no solo. A portuguesa TAP deu conta do corte de 3.500 voos por causa do coronavírus.
No entanto, as empresas do setor aeronáutico anunciaram que vão manter os esforços para reduzir a sua pegada carbónica. A 13 de março, a International Civil Aviation Organization (ICAO) anunciou um “passo crítico” no que diz respeito aos sumidouros de carbono, ao selecionar várias opções para a compra de créditos. “Num momento de extremo stress para a indústria, a aviação mantém o seu compromisso de lutar contra a crise climática”, disse à Bloomberg Annie Petsonk, analista do Environmental Defense Fund, said on Friday.
De acordo com as estimativas, cerca de 2,5 mil milhões de toneladas de CO2 têm de ser compensadas pela aviação através de sumidouros entre 2021 e 2035, algo que poderá custar entre 15 mil milhões e 100 mil milhões de dólares.
Jovens manifestam-se online e ameaçam processar governos
Primeiro foi a jovem ativista sueca Greta Thunberg, que usou a sua conta na rede social Twitter para apelar aos seus seguidores e ativistas em defesa do clima para que não abrandem a sua luta contra as alterações climáticas, ainda que neste momento devam evitar a todo o custo as grandes concentrações de pessoas e marchas de protesto pelo mundo, por causa da pandemia provocada pelo novo coronavírus.
Milhares de jovens ativistas em todo o mundo terão agora de mudar a forma como se manifestam: em vez de grandes marchas e aglomerados de pessoas, cada um deve resguardar-se, evitar multidões e protestar sobretudo online.
“A crise climática e ecológica global é a maior que a Humanidade já enfrentou, mas por agora teremos de encontrar novas maneiras de alertar para esta problemática e apelar à mudança de comportamentos, que não envolvam grandes multidões”, disse Greta.
Em países como o Japão, Coreia do Sul, Índia e Nova Zelândia, os jovens ativistas climáticos estão também a organizar massivos protestos online, ao mesmo tempo que mudam de tática e ameaçam recorrer à greve e processar em tribunal os governos dos seus países para os obrigar a avançar com planos mais agressivos de luta contra as alterações climáticas, conta a Bloomberg Green.
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