Filipe Santos Costa assina a newsletter de fim de semana do ECO. "Novo normal", a análise de um tema destes dias, a leitura dos jornais de hoje e o que fica das opiniões televisivas de ontem.
Chegámos àquele momento quinquenal em que o Partido Socialista transforma um facto rotineiro da nossa existência democrática – as eleições presidenciais – num drama doméstico. Se é dado a cenas deste género, e o novo Big Brother não lhe enche as medidas, provavelmente já pegou nas pipocas.
Longe de mim querer ser spoiler de prazeres alheios… mas esta novela não só é bastante estafada, como já tem o final escrito: com ou sem Ana Gomes na corrida (e a ex-eurodeputada quer mesmo ser candidata), o PS vai ajudar a reeleger Marcelo. Poderá fazê-lo apoiando-o expressamente (o que é pouco provável), ou dando liberdade de voto à sua gente, ao mesmo tempo que figuras do partido assumem o voto no atual Presidente (vai uma aposta em como vai ser assim, tal como em 2015?).
Ou seja, por muito entusiasmante que possa parecer mais uma temporada da série “Sarilhos presidenciais” – desta vez com Ana Gomes no papel de maverick – só há um partido sobre cujo comportamento nas presidenciais não restam hoje dúvidas: o PS, precisamente. Com mais ou menos ruído, e apesar de ainda faltarem alguns passos institucionais que terão de ser cumpridos, é claro que o PS estará com Marcelo – Ferro Rodrigues já lhe prometeu o voto, e Augusto Santos Silva, na entrevista que lhe fiz esta semana, apresentou todo um quadro de razões que levarão a esse desfecho (pode ouvir aqui ou aqui).
O que ainda não é claro é o que farão os outros partidos. O PSD apoiará o seu ex-líder, quando Alberto João Jardim desqualifica Marcelo como “o candidato do Partido Socialista”? O que fará Rio se Miguel Albuquerque avançar mesmo, contra a “situação um pouco bizarra que é a circunstância do centro-direita não ter candidato no horizonte”? E, note-se: tanto Jardim como Albuquerque têm, no PSD, mais peso do que Ana Gomes no PS. (Porém, a bravata de Albuquerque terá sobretudo a ver com ganhos de posição política num momento que será muito difícil para a Madeira – a crise pós-covid será brutal, numa região de monocultura do turismo, há um braço de ferro em curso com Lisboa e haverá que negociar cada cêntimo a receber no Orçamento Suplementar).
É claro que o desfecho previsível, do lado do PSD, é o apoio a Marcelo. A troca de elogios de ontem entre o chefe do Estado e o líder do PSD não caiu do céu – Salvador Malheiro, um artífice de encontros convenientes, juntou-os no momento certo para limparem o pó ao percurso partidário comum. “Somos da mesma área”, disse Marcelo; “António Costa não é do PSD”, lembrou Rio. Com um simples almoço, Rio apareceu na foto com Marcelo sem precipitar o seu calendário, e Marcelo apressou-se a “contrabalançar a colagem de Costa à sua recandidatura”, conforme salienta o Expresso.
O que ainda não é claro é o que farão os outros partidos. O PSD apoiará o seu ex-líder, quando Alberto João Jardim desqualifica Marcelo como “o candidato do Partido Socialista”? O que fará Rio se Miguel Albuquerque avançar mesmo, contra a “situação um pouco bizarra que é a circunstância do centro-direita não ter candidato no horizonte”?
E o que fará o CDS, quando a influência do partido encolhe a olhos vistos e parte da direita anda de candeia à procura de um candidato alternativo a Marcelo? (Curiosamente, nenhum dos apelos a uma candidatura de Adolfo Mesquita Nunes veio da atual direção do CDS – há silêncios que são eloquentes.)
Por outro lado, a eventual candidatura de Ana Gomes pode atrapalhar a restante esquerda. O BE quer recandidatar Marisa Matias – que espaço perderá se a ex-eurodeputada estiver em campo? A mesma questão para o PCP, que lança sempre um nome próprio – depois do desempenho dececionante de Edgar Silva em 2016, os comunistas correm mais riscos se Ana Gomes estiver em jogo.
Costa prepara-se para ser tão pragmático na reeleição de Marcelo como Cavaco foi na reeleição de Soares. E, ao contrário de Cavaco, tem um bom argumento para o pragmatismo, como deixou claro na Comissão Política do PS, na quinta-feira à noite: tem mais com que se preocupar, a braços com uma crise profunda (disse isso claramente no final da reunião, em resposta às poucas vozes que levantaram a questão presidencial).
À beira de prolongar a coabitação, Costa tem outra vantagem sobre Cavaco em 1991: a natureza de Marcelo é bastante menos conflitual do que a de Soares – por muito que o segundo mandato seja diferente do primeiro (são sempre), e por muito que Marcelo queira um resultado reforçado para ganhar espaço de atuação, não tem o perfil confrontacional de Soares. Por outro lado, terá, como Soares teve, a tentação de ajudar a sua família política a voltar ao poder…
Pacheco Pereira, que acompanhou de perto a decisão de Cavaco há três décadas, avisa hoje no Público: “A seu tempo [Costa] vai-se arrepender“.
“Sarilhos presidenciais”, temporada 6
Dito isto, sim, o PS tem uma longuíssima história de divergências internas por causa das presidenciais. Porém, apesar da capacidade da comunicação social para seguir cada um desses episódios com o mesmo entusiasmo da primeira vez, para um partido que já se viu sem liderança por causa destas eleições, ou que já se viu dividido entre Soares e Zenha, o affair Ana Gomes é um caso menor.
Como o ECO é um jornal de economia, e provavelmente espera encontrar aqui números, cá vão alguns:
- Já houve nove eleições presidenciais. As de 2021 serão as décimas;
- O PS só não teve problemas internos em quatro;
- Nas restantes, embora com níveis de drama e impacto diferentes, a corrida a Belém foi sinónimo de sarilhos no partido. A confirmar-se o avanço de Ana Gomes, será, portanto, a sexta vez que o PS se divide na corrida a Belém.
As eleições presidenciais pacíficas entre os socialistas foram as primeiras, em 1976, a recandidatura de Mário Soares, em 1991, e as duas candidaturas de Jorge Sampaio, em 1996 e 2001. Sampaio é um caso excepcional nesta novela: não só se impôs internamente sem grandes dramas, como protagonizou outro facto único, reunindo em seu apoio toda a esquerda logo na primeira volta das eleições de 1996. Eis o resto da história:
1980
Em 1976 Ramalho Eanes foi o primeiro Presidente da República eleito em sufrágio direto e universal, com 61%, graças ao apoio dos três maiores partidos (PS, PSD e CDS). O PS foi o primeiro a negociar nos bastidores o apoio a Eanes, mas só depois de muitas hesitações – havia muito quem preferisse que o candidato fosse Soares. Acabou por ser Eanes. Mais por falta de alternativa do que por convicção, pois conheciam-no mal.
Na hora da recandidatura, Soares já conhecia a peça. Não gostava do cunho presidencialista que Eanes tentava imprimir ao regime, corporizado nos governos de iniciativa presidencial e nas relações cada vez mais tensas do PR com o ecossistema partidário. Soares não apreciava este “gaulismo à portuguesa”. Tinha como companheiro, nessa luta, Francisco Sá Carneiro, que denunciava o “presidencialismo militar” de Eanes.
A descolagem de Sá Carneiro culminou no lançamento de uma candidatura alternativa, de Soares Carneiro, apoiada pela AD (PSD, CDS, PPM e Reformadores), que governava desde dezembro de 1979. Soares, apesar da desconfiança em relação a Eanes, negociou com este um acordo, com condições sérias, incluindo o fim dos governos de iniciativa presidencial e da acumulação de funções de Presidente da República e chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Eanes, sem contar com o PSD e o CDS, aceitou esses termos, em troca do apoio do PS. Até que…
Em outubro de 1980, dois meses antes das presidenciais, a AD voltou a vencer as legislativas e Eanes declarou a sua identificação com o modelo de sociedade proposto por Sá Carneiro. Ao tentar repescar votos à direita, Eanes traía o acordo com o PS. Entre a espada e a parede, e contra a opinião da direção socialista, Soares tenta a quadratura do círculo: retira o apoio pessoal a Eanes, mas para não obrigar o PS a fazer o mesmo, auto-suspende-se do cargo de secretário-geral até às presidenciais. Uma decisão mal compreendida por boa parte do Secretariado Nacional do PS, e que deixaria marcas por muitos anos. Se é de dramas presidenciais socialistas que falamos, 1980 e 1985 rebentaram a escala do dramatismo.
1985
A candidatura presidencial que Soares recusara em 1976, e que não teve condições para afirmar em 1980, concretizou-se em 1985. Enquanto fundador e líder histórico do PS, seria a escolha natural, apoiada por todos os socialistas, certo? Errado.
Num dos confrontos mais dramáticos da história do PS, Soares e Salgado Zenha defrontaram-se, consumando publicamente a ruptura entre dois antigos aliados, supostamente inseparáveis, com uma história de fraternidade que ia muito além das conveniências políticas. Uma sucessão de divergências – sobretudo a partir da questão presidencial de 1980, que engrossaram no episódio do ex-Secretariado (em que Soares se viu em minoria na sua própria direção), e na difícil revisão constitucional de 1982 – foi cavando distâncias e alimentando ressentimentos, que acabaram por ditar um divórcio que culminou num confronto eleitoral.
“Soares e Zenha, não há quem os detenha”, a palavra de ordem dos primeiros tempos, morreu de morte violenta, com o PS partido. Soares ganhou – e a história, sabemos, é escrita pelos vencedores. (Por coincidência, o Sol de hoje compara a tensão entre António Costa e Pedro Nuno Santos ao braço de ferro Soares/Zenha. Se for assim, são más notícias para Pedro Nuno.)
Anos 2000
Em 1996 e 2001 houve um interlúdio pacífico na história presidencial dos socialistas graças a Jorge Sampaio, que com um notável sentido de timing se apresentou no início de 1994 para as eleições de 1996. Mas a balbúrdia socialista das presidenciais regressou na sucessão de Sampaio.
Em 2006, Soares voltou inopinadamente, para o último ajuste de contas com Cavaco, e boa parte do PS não percebeu nem aceitou esse regresso ao passado. Apesar do apoio de José Sócrates e da sua direção à terceira corrida presidencial de Soares, Manuel Alegre correu em pista própria, apoiado por muitos socialistas. Mais uma vez, o confronto entre irmãos deu um picante especial à contenda – e Alegre, o candidato que não pediu licença ao partido, ficou muito à frente de Soares. Cavaco ganhou.
Cinco anos depois, a história repetiu-se: Cavaco ganhou outra vez, e os votos socialistas voltaram a dividir-se. Alegre, o rebelde de 2006, tornou-se candidato oficial do PS em 2011. Para seu azar, a candidatura do independente Fernando Nobre abocanhou muito eleitorado socialista (e contou, a título individual, com o apoio tanto de socialistas descontentes como de sociais-democratas pouco cavaquistas). E ainda houve outro candidato com cartão do PS, Defensor de Moura, ex-deputado e ex-autarca socialista de Viana do Castelo.
Como não há duas sem três, em 2016, perante a candidatura previsivelmente imbatível de Marcelo Rebelo de Sousa, o PS optou… por dividir forças. Outra vez. Maria de Belém, até então presidente do PS, candidatou-se com pergaminhos partidários. Henrique Neto, ex-deputado socialista, apresentou-se pela pista de fora. Mas foi o “independente” Sampaio da Nóvoa quem teve ao seu lado, até na sua direção de campanha, os nomes mais sonantes da direção do PS.
Marcelo venceu. E será ele, desta vez, quem terá os apoios socialistas que contam.
Podemos retirar deste histórico alguma conclusão? Sim: nem os triunfos presidenciais catapultaram o PS para a governação, nem as divisões socialistas nas disputas de Belém prejudicaram os resultados do partido noutras frentes. Cada coisa é uma coisa. E a regra também vale para o PSD.
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Dramalhões presidenciais, essa bonita tradição socialista
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