Os investidores procuram garantir rendibilidades elevadas e os emitentes querem aproveitar a descida das yields para baixar custos e assegurar as cada vez mais elevadas necessidades de financiamento.
As elevadas necessidades de financiamento que empresas e países enfrentam em 2024 são apontadas por vários analistas como um dos principais riscos dos mercados financeiros este ano, devido às dúvidas sobre a capacidade de os investidores absorverem toda a dívida que vai ser emitida.
A evolução em janeiro parece afastar, para já, este cenário preocupante de falta de procura para satisfazer toda a oferta de obrigações que está e vai continuar a “inundar” o mercado, isto numa altura em que os alarmes sobre a degradação das contas públicas a nível global começam a soar de forma mais intensa e os bancos centrais estão a sair de cena devido à redução dos seus programas de compras de ativos (quantitative tightening).
Janeiro é habitualmente um mês muito agitado nas emissões de dívida. Empresas e governos regressam ao mercado depois da pausa de dezembro e procuram angariar uma parte substancial do financiamento projetado para a totalidade do ano. O primeiro mês deste ano foi particularmente intenso, tendo sido atingidos recordes em diversas geografias e modalidades diferentes de dívida, com os emitentes a aproveitarem a descida das yields e a procura robusta dos investidores por obrigações, numa altura em que as taxas de juro permanecem elevadas.
“Os investidores procuram garantir rendimentos elevados, impulsionados pela perceção de um corte das taxas de juro pelos bancos centrais ao longo do ano de 2024. Os governos das economias avançadas e das emergentes, bem como muitas empresas, aproveitam o apetite dos investidores, tendo emitido um montante recorde de dívida em janeiro”, explica Paulo Rosa, economista sénior do Banco Carregosa.
Recorrendo a um ditado popular, é caso para dizer que “juntou-se a fome com a vontade de comer”. Os emitentes têm de refinanciar a “montanha” de dívida de prazos mais curtos que angariaram durante a pandemia e procuram custos de financiamento mais baixos depois da queda recente das yields. Já os investidores estão ávidos por retornos interessantes com risco mais reduzido, antes que o abrandamento da economia e o alívio da política monetária provoquem uma descida mais acentuada nas taxas de rendibilidade das obrigações.
O mercado de dívida “está ao rubro”, com os “investidores a querem garantir agora yields de longo prazo” elevadas, comentou ao Financial Times Richard Zogheb, analista do Citigroup.
A expectativa de que os bancos centrais vão começar em breve a reduzir as taxas de juro induziu uma descida considerável das yields das obrigações nas últimas semanas de 2023, numa tendência que se prolongou no arranque de 2024. Este movimento reforçou o interesse de empresas e governos em acelerar as emissões de dívida para garantirem custos de financiamento mais baixos.
O estreitamento dos spreads das taxas da dívida corporativa também representou um incentivo adicional para as empresas regressarem em força ao mercado de dívida. Isto depois de alguma retração em 2023 devido à incerteza sobre o pico das taxas de juros.
Oferta dispara e procura responde
Os dados relativos a janeiro validam de forma muito evidente a explosão de emissões de dívida no arranque do ano, uma tendência que teve uma resposta à altura por parte dos investidores. O volume de emissões foi particularmente intenso na Europa e sobretudo por parte dos soberanos.
Os países da Zona Euro angariaram um recorde de 83 mil milhões de euros diretamente junto dos investidores através de emissões sindicadas realizadas em janeiro. A procura ficou cerca de dez vezes acima da oferta, atingindo também o nível mais elevado de sempre. As emissões conduzidas pela Alemanha e Grécia atraíram ordens recorde, demonstrando o interesse dos investidores por títulos com nível de risco diferente. Espanha aproveitou o bom momento e a procura recorde para emitir 15 mil milhões de euros de uma só vez, o que representa o montante mais alto de sempre.
As emissões totais de dívida na Europa (incluindo Reino Unido, empresas e bancos) atingiram 351 mil milhões de euros em janeiro, superando o anterior recorde. A maior fatia (55%) corresponde a dívida soberana, num crescimento superior a 50% face a 2023.
As empresas norte-americanas de maior capitalização emitiram 189 mil milhões de dólares em janeiro, superando o anterior recorde mensal fixado em 2017. No Reino Unido, as companhias com rating de qualidade colocaram 120 mil milhões de libras no mercado, o que também representa um máximo histórico.
Até na dívida ESG foi fixado um recorde em janeiro, apesar de nos últimos tempos ter sido notório o menor interesse dos investidores por títulos de dívida que cumprem critério ambientais, sociais e de governance. Foram realizadas 540 emissões ESG a nível global o primeiro mês do ano, que angariaram 150 mil milhões de dólares.
Os investidores procuram garantir rendimentos elevados, impulsionados pela perceção de um corte das taxas de juro pelos bancos centrais ao longo do ano de 2024. Os governos das economias avançadas e das emergentes, bem como muitas empresas, aproveitam o apetite dos investidores, tendo emitido um montante recorde de dívida em janeiro.
Juros altos atraem capital
Depois de diversos anos com taxas de juro em terreno negativo devido a uma série de crises da Zona Euro, os investidores têm agora perspetivas mais apelativas. A taxa dos depósitos do BCE está num máximo histórico de 4% e a manutenção da inflação acima da meta dos 2% afasta uma inversão agressiva da política monetária.
Os analistas do Bank of America estimam um fluxo de 7 biliões de euros para os ativos de taxa fixa da Zona Euro nos próximos anos, destacando o maior interesse de investidores do mercado asiático e do Médio Oriente. Os resultados das emissões das últimas semanas “sugerem uma procura particularmente saudável” e validam a “nossa perspetiva de que a oferta, apesar de mais elevada em 2024, pode ser absorvida sem problemas”, referem os especialistas do banco de investimento.
Tendo em conta apenas dívida soberana, os países da Zona Euro, EUA, Reino Unido e Japão devem emitir 2,1 biliões de dólares este ano, um crescimento de 7% face a 2023, de acordo com as projeções da Bloomberg Economics. O Morgan Stanley prevê a emissão de 165 mil milhões de dólares em dívida soberana por parte dos países das economias emergentes em 2024, um crescimento de 20% face ao ano passado.
Mercado continua vigilante
Apesar do forte apetite atual dos investidores, permanecem os receios sobre um potencial desfasamento entre a oferta e a procura, sobretudo devido a alterações de expectativas sobre a evolução das taxas de juro e degradação das contas públicas. Basta lembrar o que aconteceu em outubro, quando as yields dispararam a nível global em reação à perspetiva de manutenção das taxas de juro em níveis elevados por um período prolongado (higher for longer).
“Uma perceção de adiamento do corte das taxas de juro pelos bancos centrais poderá afastar novamente o forte interesse dos investidores evidenciado em janeiro”, alerta Paulo Rosa. Dados económicos robustos nos EUA e a persistência da inflação da Zona Euro em níveis elevados levaram os investidores a atribuírem uma probabilidade mais reduzida de descidas de juros em março, apontando agora para cortes no segundo trimestre.
A crise no Reino Unido que levou à queda do governo de Liz Truss em 2022, depois de ter anunciado um corte de impostos sem esclarecer como seria financiado, bem como a ameaça de incumprimento nos EUA no ano passado, também ilustram como os eventos orçamentais e políticos podem representar uma ameaça à estabilidade no mercado de obrigações. Isto num ano repleto de eleições legislativas em todo o mundo.
Dívida pública em níveis recorde, défices orçamentais cada vez mais elevados, custos de financiamento ainda altos, encargos crescentes com as alterações climáticas, aumentos dos gastos com pensões e sistemas de saúde devido ao envelhecimento da população, turbulência política e receios de crises nos mercados financeiros são alguns dos díspares fatores que podem levar os investidores a exigir um prémio cada vez mais elevado para deter títulos de longo prazo em carteira.
A dívida pública nas economias avançadas já superou 112% do PIB, contra 75% há duas décadas. Cortes de rating e sucessivas ameaças de shutdown e default nos EUA, devido à falta de entendimento em Washington, motivam uma vigilância mais apertada dos investidores, com os leilões de dívida a serem escrutinados de forma mais apertada, sobretudo ao nível da procura.
Na Zona Euro, a Alemanha vive uma crise orçamental e enfrenta perspetivas de crescimento económico anémico. A descida das yields dos países periféricos está a perder um dos seus principais suportes nos últimos anos, uma vez que o BCE está a reduzir o seu balanço e terá cada vez menos dívida nas suas carteiras. Estimativas do Barclays apontam para que este ano os investidores tenham de absorver um recorde de 675 mil milhões de euros de dívida soberana em 2024, 25 mil milhões de euros acima do registado em 2023.
Apesar do equilíbrio tranquilo no início do ano, a relação entre oferta e procura de dívida será sem dúvida um dos temas a acompanhar de perto este ano nos mercados.
Portugal já emitiu 5,7 mil milhões em 2024
Portugal também seguiu a tendência global de carregar nas emissões de dívida no início de 2024, em operações que receberam uma procura robusta por parte dos investidores. O IGCP colocou 4 mil milhões de euros em obrigações a dez anos na habitual emissão sindicada dos primeiros dias do ano. No final de janeiro colocou mais 1.699 milhões de euros num leilão regular de três linhas obrigações (4, 18 e 21 anos). Emitiu também 1.900 milhões de euros em bilhetes do Tesouro (12 meses).
O montante das necessidades de financiamento líquidas do Estado português em 2024 situa-se em 11,9 mil milhões de euros, estando previstas emissões brutas de 13,9 mil milhões de euros em obrigações do Tesouro. Só em janeiro já foi angariado mais de 40% deste montante.
“As necessidades de financiamento do Estado português começam gradualmente a estar satisfeitas”, assinala o economista do Carregosa, avisando que “caso as yields se mantenham, o Estado português não se conseguirá financiar com custos mais baixos”.
Se “há um mês era claro um início de um novo ciclo de descida das taxas de juro pelos bancos centrais nos próximos meses, atualmente esse cenário tem-se afastado”, diz Paulo Rosa. Destacando que “a economia norte-americana mantém-se relativamente robusta”, o economista assinala que não são expectáveis “cortes das taxas de juro tão cedo por parte da Fed” e “o BCE tende a ser um seguidor da postura monetária do banco central dos EUA, sempre atento a uma eventual crise cambial”.
Também as empresas portuguesas recorreram em força ao mercado de dívida. Entre as várias operações, a EDP emitiu 750 milhões de euros em dívida verde, o BCP colocou 400 milhões de euros em dívida perpétua e a Greenvolt emitiu 100 milhões de euros junto de 2.914 pequenos investidores e dois investidores institucionais, com a procura a superar em 11,6% a oferta.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Forte apetite por obrigações abre caminho para emissões recorde de dívida
{{ noCommentsLabel }}