Fatores como o aumento da dívida, o fim do programa de estímulos do BCE ou o risco de subida das taxas de juro fazem com que não estejamos a salvo de novos colapsos, alerta a presidente da CMVM.
Onde estava quando o Lehman Brothers faliu? Em Londres, numa reunião de trabalho na Autoridade de Serviços Financeiros, quase em frente à sede europeia do Lehman Brothers, Gabriela Figueiredo Dias já ocupava um cargo de direção na instituição a que hoje preside. Era a diretora adjunta do departamento internacional e de política regulatória da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e, a 15 de setembro de 2008, preparava-se para iniciar aquela reunião quando foi surpreendida pela notícia. “Foi recebida por todos nós, independentemente das nacionalidades, com a mesma incredulidade, e com o sentimento de que o mundo tinha acabado de mudar dramaticamente. Afinal, as instituições demasiado grandes para falir também caem, pensámos”. A presidente da CMVM está convicta de que esta história não se repetirá; pelo menos, não com “as mesmas causas da anterior”. Mas não ignora a realidade: fatores como o aumento da dívida, o fim do programa de incentivos do Banco Central Europeu (BCE) ou o risco de subida das taxas de juro fazem com que não estejamos a salvo de novos colapsos, avisa.
Gabriela Figueiredo Dias estava a um oceano de distância do epicentro do colapso financeiro, mas assistiu de perto ao que terá sido, também nos Estados Unidos, a reação à maior falência da história. “Mais tarde, nesse dia, vimos pessoas, funcionários do Lehman Brothers, a sair do número 25 de Bank Street, o emblemático edifício em Canary Wharf, com rostos de cera, sempre sozinhas, alguns transportando caixas, a andarem como que sem destino”, conta a presidente da CMVM. “O silêncio, dos que abandonavam o edifício e dos que os observavam, era impressionante. Um espanto ainda em processamento”.
Quando regressou a Lisboa, encontrou uma CMVM “intranquila e a preparar-se, enquanto regulador, para algo que não conhecíamos e não sabíamos antecipar, mas que se pressentia violento e muito diferente de todas as experiências anteriores de crise“. O que se seguiu foi a redefinição das prioridades de supervisão, “na tentativa de antecipar os problemas”. Mas mal tiveram tempo: como hoje sabemos, a queda do Lehman teve um efeito de arrasto também em Portugal, onde se seguiram as quedas do Banco Português de Negócios (BPN) e do Banco Privado Português (BPP).
As prioridades de supervisão foram redefinidas, na tentativa de antecipar os problemas e de nos prepararmos para lidar com eles. Quase sem tempo, porque, logo a seguir, tivemos o BPN e depois o BPP.
“O mundo da supervisão nunca mais foi o mesmo”, lembra Gabriela Figueiredo Dias. A regulação apertou a ponto de, hoje, no setor bancário, haver até críticas de um exagero regulatório. Mas não foi o suficiente para evitar, após a queda do Lehman, vários escândalos financeiros por todo o mundo. Só em Portugal, depois do BPN e do BPP, o país assistiu ao colapso do Banco Espírito Santo (BES), em 2014, e ainda do Banif, em 2015. Em quase todos os casos portugueses há indícios de gestão danosa por parte dos responsáveis à frente dos bancos.
“Não há sistemas perfeitos para resistir às crises”
Se a crise financeira trouxe algo, foram lições. Desde logo, confrontou-nos com “a importância crítica de uma governação robusta e boas práticas nas instituições, bem como do foco da supervisão nos riscos ocultos de certos produtos e nas práticas de comercialização dos mesmos”. É certo que a intervenção dos reguladores na comercialização de alguns produtos tem sido mais notória, mas é certo também que não param de aparecer novos produtos. Veja-se, por exemplo, a proliferação das moedas virtuais, para cujo elevado risco, com potenciais “perdas substantivas”, a CMVM tem vindo a alertar. A comercialização de produtos de capitalização complexos aos balcões dos bancos, para financiamento das casas-mãe das instituições financeiras, também não tem escapado à atenção dos reguladores. Mas, como já resumiu Esmeralda Dourado, administradora não executiva da TAP, “existem processos de criatividade na forma de tornear algumas questões de escrutínio”.
A verdade é que, embora as lições pareçam, em alguns casos, não ter sido aprendidas, a crise desencadeada pela queda do Lehman serviu para “evidenciar, da pior forma, a relevância da informação financeira e do papel dos auditores nesta matéria”. O colapso ficou “sempre associado à crise do subprime e aos efeitos do empacotamento excessivo de risco em determinados produtos e excessiva concentração do investimento nesses mesmos produtos”.
Ficou comprovado que não existem sistemas perfeitos para resistir às crises como o demonstraram os impactos igualmente dramáticos desta crise em sistemas económicos e mercados regulados de forma muito diferente, como o americano e o europeu.
Gabriela Figueiredo Dias destaca outras lições, “porventura menos evidentes, mas igualmente importantes”. É o caso da “globalização dos riscos e das crises, a exigir políticas, regras e princípios supranacionais e uma coordenação reforçada entre reguladores, nacionais e internacionais”, uma alteração que veio impactar profundamente a arquitetura da regulação e da supervisão europeia.
Ao mesmo tempo, “ficou comprovado que não existem sistemas perfeitos para resistir às crises ou prevenir as suas causas, como o demonstraram os impactos igualmente dramáticos desta crise em sistemas económicos e mercados regulados de forma muito diferente, como o americano e o europeu“. Finalmente, passámos a compreender “a importância do Estado em situações de crise, substituindo-se, em circunstâncias limite, aos agentes económicos para assegurar a estabilidade financeira, e a fragilidade de certos modelos de autorregulação”.
“Não voltaremos a ter um Lehman. Mas podemos voltar a ter uma Enron”
Tudo avaliado, Gabriela Figueiredo Dias duvida da repetição da história, embora não negue os riscos de uma história diferente, mas igualmente perigosa. “Muita coisa mudou depois da crise — a regulação, a supervisão os modelos de negócio. Estou convicta de que a história do Lehman Brothers não se repetirá. E não é já pensável, à luz da nova regulação entretanto criada, de uma nova filosofia de supervisão e de uma mentalidade em mudança, a ocorrência de uma crise com as mesmas causas da anterior”, afirma.
Mas os sinais de alerta estão aí. “Não estamos a salvo de novos colapsos, nem de uma nova crise. Os riscos não desapareceram, estão aí de roupa nova, nacionais e globais“. E a lista é extensa: “a inovação financeira vertiginosa, o aumento global da dívida, pública e privada, a interrupção das compras de dívida pelo BCE e a subida das taxas de juro nas economias avançadas, o risco de ajustamento súbito dos preços de alguns ativos, de taxas de juro, e das condições de mercado nas economias emergentes poderão ser os elementos de ativação de uma nova crise, no médio prazo”.
Não estamos a salvo de novos colapsos, nem de uma nova crise. Os riscos não desapareceram, estão aí de roupa nova, nacionais e globais.
A presidente da CMVM reconhece até que as entidades de supervisão estão hoje mais bem preparadas para combater os fatores que levaram à última crise, mas não está certa de que estejam prontas para enfrentar a próxima, até porque, contra modelos e comportamentos errados, regulação e supervisão valem de pouco. “A regulação e a supervisão, sendo indispensáveis para assegurar um anel de segurança e de confiança, não podem assegurar por si a resiliência do sistema contra modelos de negócio assentes em incentivos errados, contra a falta de ética e contra comportamentos de investimento desinformados e não responsáveis.
Ao mesmo tempo, é limitada a intervenção dos reguladores, quando estes só são chamados para reagir e não para prevenir. “Os reguladores não são garantes de primeira linha: só entram quando falham os primeiros níveis de proteção do sistema — os acionistas, os órgãos de fiscalização, os auditores, as agências de rating. Sem uma atuação robusta destes gatekeepers, o risco de falhas graves e sistémicas estará sempre iminente“.
Assim, Gabriela Figueiredo Dias insiste que “não voltaremos a ter um Lehman Brothers”. Mas não descarta que a falta de ética e as más práticas levadas a cabo pelas administrações resultem em novos casos de falências de gigantes, como foi o caso, em 2001, da Enron, gigante norte-americana do setor energético que é tida como um dos maiores casos de fraude de colarinho branco. A empresa, que manipulava as contas e as projeções de lucros para atrair investidores e valorizar de forma fraudulenta as suas ações, acabou por falir quando tinha mais de 60 mil milhões de dólares em ativos.
“Podemos voltar a ter uma Enron”, conclui a presidente da CMVM.
A 14 de setembro de 2008, quando faltava apenas um dia para o mundo saber que o Lehman Brothers cairia, a Reserva Federal dos Estados Unidos continuava a sua discussão sobre o que fazer e já havia rumores daquilo que iria acontecer na segunda-feira, o dia seguinte. No entanto, os jornais portugueses mantinham-se silenciosos sobre o tema: nem uma palavra se dedicava ao trabalho a ser feito na Fed de Nova Iorque ou ao risco de deixar cair um banco de investimento desta dimensão.
Em Portugal, como nas duas semanas que antecederam o dia que, simbolicamente, muitos consideram assinalar o princípio de uma das maiores crises financeiras do mundo moderno, os jornais preocupavam-se com temas mais domésticos. No Diário de Notícias, como no Público, o tema das entradas nas universidades marcava o dia: enquanto o DN assinalava o aumento de 6% no número de colocados na primeira fase, o Público marcava a percentagem de candidatos aceites: quatro em cada cinco tinham conseguido um lugar, lia-se na manchete.
Em ambos os jornais, destacava-se também o concerto que, nessa noite de domingo, Madonna daria em Lisboa. No Diário de Notícias, Leonor Beleza, em grande entrevista, era citada dizendo: “Estou contente por ver Ferreira Leite à frente do PSD”.
O Correio da Manhã dava o maior destaque à investigação da Judiciária relativamente à Estradas de Portugal, cujos funcionários, alguns deles em cargos de dirigentes, poderiam estar envolvidos num caso de corrupção para favorecer os seus próximos. Além disto, destacava Madonna e a primeira Bota de Ouro de Cristiano Ronaldo, que viria a ganhar mais três.
O Jornal de Negócios, na sua edição de fim de semana que abrangia desde sexta-feira 12 a domingo 14, assinalava o número de residentes portugueses a trabalhar no estrangeiro, que disparara para o dobro só no primeiro semestre de 2008. O BPN, que estava perto de ser nacionalizado, negociava então um reforço de capitalização junto da banca.
O Lehman Brothers foi sempre gerido por membros da família Lehman desde que foi fundado em 1844 até à década de 1970. Foi em 1969 que Robert Lehman, o então patriarca da família, morreu sem deixar um descendente ativamente envolvido no banco. Como já contava com pessoas externas em cargos de topo há várias décadas, o Lehman Brothers acabou por contratar Pete Peterson para a presidência executiva em 1973. Peterson, que foi um dos fundadores da Blackstone, era presidente executivo e chairman da empresa de equipamento de projeção cinematográfica Bell & Howell naquela altura. A conjuntura financeira da época não era a melhor, mas Peterson conseguiu manter o Lehman Brothers de pé. Comandou o banco nos processos de aquisição da Abraham & Co. e de fusão com o Kuhn Loeb & Co.
Foi há 10 anos que o Lehman Brothers colapsou. O dia 15 de setembro marca simbolicamente o início da maior crise financeira dos últimos 80 anos. ‘Onde estava quando o Lehman faliu?’ é uma rubrica diária, de 1 a 15 de setembro, onde empresários, banqueiros, políticos, economistas e advogados dizem ao ECO como viveram a queda do banco e o que aprendemos com a crise.
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“História do Lehman não se repetirá. Mas os riscos estão aí de roupa nova”, avisa Gabriela Figueiredo Dias
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