A saída de Lagarde vai lançar a corrida pela sucessão no FMI, mas só depois de renunciar formalmente. Economias emergentes querem quebrar acordo que dá lugar à Europa e já se especulam sobre nomes.
Do não repetido sucessivamente até ao sim final passaram pouco mais que uns meses, mas Christine Lagarde foi mesmo nomeada para suceder a Mario Draghi na presidência do Banco Central Europeu (BCE) para os próximos oito anos e pode abrir uma guerra pela sucessão na liderança do Fundo Monetário Internacional… quando finalmente pedir renúncia do seu mandato. Até lá, nada mudará em Washington.
Foi um rumor persistente e nem sequer é deste ciclo eleitoral. Em 2014, a francesa que se tornou em 2011 a primeira mulher a assumir a liderança do FMI, foi sondada por Angela Merkel para a presidência da Comissão Europeia, cargo que seria do cabeça-de-lista pelo Partido Popular Europeu (PPE) Jean-Claude Juncker, na única vez que o processo do spitzenkandidaten funcionou (até ver).
Antes e depois das eleições europeias, nos corredores de Bruxelas o seu nome voltou a surgir intermitentemente, mas ia desaparecendo perante as recusas públicas e determinadas da também ex-ministra das Finanças de Sarkozy. “Não, não, não, não, não, não… não estou interessada em qualquer cargo — BCE, Comissão, etc, etc, etc, etc, etc — europeu, não. (…) Tenho um trabalho muito importante aqui [no FMI] que quero fazer e não vou abandonar este lindo navio quando pode haver águas turbulentas no horizonte”, disse a francesa em entrevista ao Financial Times em setembro do ano passado, numa das muitas recusas que viria a fazer publicamente, até se revelar “aborrecida e farta” da especulação em torno do seu nome.
Para conseguir finalmente desbloquear um acordo no Conselho Europeu, e dar uma vitória a Emmanuel Macron, Christine Lagarde foi a escolhida para suceder aos oito anos de Mario Draghi, podendo vir a ser a primeira mulher e o primeiro não economista (é jurista) a liderar a instituição. Na sequência da nomeação, Christine Lagarde disse-se “honrada” pela escolha.
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Mas a sua nomeação ainda tem de ser confirmada. Quase todos os passos até ao sucesso da nomeação são uma mera formalidade, menos um. Primeiro o Conselho Europeu indica um nome, de seguida o Eurogrupo discute esse nome e faz uma recomendação, que o Conselho Europeu então aprova. Até aqui, tudo formalidades. Depois seguem-se as consultas ao Parlamento Europeu e ao conselho de governadores do Banco Central Europeu. Esta última pode não ser o passeio no parque esperado por várias razões:
- Christine Lagarde não é economista, nem tem experiência em política monetária, a primeira vez na história (curta) da instituição.
- Será a primeira vez que o presidente escolhido não é um governador em exercício de um banco central da zona euro.
- Vários dos candidatos à cadeira de Mario Draghi, ultrapassados pelo acordo de Bruxelas, sentam-se no conselho de governadores, como é o caso do poderoso governador do Banco da Alemanha, Jens Weidman, do governador do Banco da Finlândia, Olli Rehn, do governador do Banco de França, François Villeroy de Galhau, e do Banco da Holanda, Klaas Knot.
- O processo de seleção do presidente do BCE deveria ser independente da política, e assim prometeram os líderes europeus, mas o acordo que levou Christine Lagarde à nomeação foi claramente e assumidamente político, e apesar da sua vasta experiência na área, o ativo mais valioso que leva para o BCE é precisamente as suas habilidades políticas.
- Porque o BCE já tem um vice-presidente que foi até há muito pouco tempo um político. O antigo ex-ministro das Finanças espanhol, Luis de Guindos, saiu em março do Governo e assumiu o cargo de vice-presidente em junho, depois de um acordo político que envolveu o seu apoio à candidatura de Mário Centeno ao Eurogrupo (percurso e escolha à qual foram colocadas reservas por estas mesmas razões, mas que não impediram a sua nomeação).
Mas até a sua nomeação ser confirmada, Christine Lagarde suspendeu funções como diretora-geral do FMI, mas não renunciou ao mandato. Ou seja, até que a renúncia seja apresentada formalmente pela francesa, não será lançada a corrida à sua sucessão. Até lá, os trabalhos do dia-a-dia serão geridos pelo seu adjunto, o norte-americano David Lipton.
Como se escolhe o sucessor de Lagarde
O diretor-geral do FMI, o cargo mais elevado na instituição e o seu efetivo líder, é escolhido formalmente a partir de um dos nomes que pode ser avançado pelos 24 diretores que representam todos os países que são membros do Fundo, sendo que apenas os Estados Unidos, Japão, China, Alemanha, França, Reino Unido e Arábia Saudita têm o seu próprio representante. Quem representa Portugal é o italiano Domenico Fanniza, que agrupa ainda a representação de Itália, Albânia, Grécia, Malta e San Marino.
Também o conselho de governadores do FMI, onde cada membro tem o seu próprio representante, pode nomear candidatos para a corrida à direção-geral do Fundo. O representante é tipicamente o ministro das Finanças ou o governador do banco central desse país, embora não necessariamente, e cada país pode ter um substituto. O representante de Portugal é o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, mas não está nomeado qualquer substituto, ao contrário da generalidade dos países.
Desde 2011, quando foi nomeada pela primeira vez Christine Lagarde, o processo para a nomeação foi alterado para o tornar mais transparente e aberto, com critérios ancorados no mérito do candidato, dando a hipótese aos governadores para fazerem as suas nomeações, e o processo de seleção — que tem sempre o objetivo de ser feito por consenso — não demorou mais do que um mês das últimas duas vezes.
O FMI definiu também vários critérios que os candidatos devem cumprir para poderem ser escolhidos, como um percurso reconhecido como decisores económicos a todos os níveis, um currículo profissional de alto nível, a capacidade demonstrada de gestão e as qualidades diplomáticas necessárias para liderar uma organização mundial, mas também de ser um defensor inequívoco do multilateralismo. São os 24 diretores que vão receber as candidaturas e reduzir a lista a três candidatos, caso sejam mais. Depois voltam a reunir-se para fazer a seleção do próximo diretor-geral, de acordo com os direitos de voto atribuídos a cada um.
Uma sucessão conturbada?
Desde a fundação do FMI em 1946, na sequência dos acordos de Bretton Woods, que há um acordo informal com os Estados Unidos para que a liderança do Fundo seja escolhido pelos países europeus, deixando a escolha do presidente do Banco Mundial para os Estados Unidos. Sendo verdade que os Estados Unidos mantêm a sua parte do acordo — Donald Trump escolheu David Malpass para presidente da instituição em março deste ano –, também o é que esta tradição tem sido muito questionada pelos países emergentes, desde a primeira nomeação de Christine Lagarde em 2011.
Na altura, os diretores que representam os BRICS — Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, com 18% dos direitos de voto na escolha, emitiram um comunicado criticar este acordo, qualificando-o como uma “convenção informal obsoleta” e a pedir um processo transparente e baseado no mérito. O processo mudou, e até houve outros candidatos de países emergentes — como o governador do Banco do México, Agustín Carstens –, mas no final os BRICS não se uniram em torno de um candidato.
O acordo para que a seleção do diretor-geral seja feita, na prática, com base na nacionalidade põe em causa a legitimidade do Fundo. (…) Vários acordos internacionais instaram à criação de um processo verdadeiramente transparente, baseado no mérito e competitivo para a seleção do diretor-geral do FMI e outros cargos de topo das instituições de Bretton Woods. Tal exige o abandono da convenção informal obsoleta que exige que o líder do FMI seja necessariamente um europeu.
No final, aplicou-se o acordo de cavalheiros entre os Estados Unidos e a Europa e, como tem sido mais frequente, voltou a ser um francês. Christine Lagarde, foi a primeira mulher a liderar o FMI, mas o sétimo francês em 22 diretores-gerais que lideraram a instituição desde a sua fundação. França teve a liderança do FMI em 44 dos seus 73 anos de história, mais de metade do tempo de vida do Fundo.
A luta cada vez mais aguerrida dos países emergentes por mais representação e influência dentro do FMI, em particular com o crescimento das economias chinesa e indiana, não tornará o processo de seleção de mais um europeu fácil, mesmo com o apoio manifestado pelos Estados Unidos ao acordo tácito que existe desde 1946. Especialmente depois de os Estados Unidos terem bloqueado a reforma do sistema de quotas do FMI, que daria mais poder a este grupo de países, sendo a primeira da lista a China.
Sucessores para todos os gostos… especialmente de França
As hipóteses de alguns dos potenciais candidatos cujos nomes têm começado a circular, como é o caso de vários dos candidatos à presidência do BCE ultrapassados pelo acordo feito em Bruxelas entre a noite de segunda-feira e manhã de terça-feira, também podem diminuir substancialmente caso os BRICS, em especial a China, mantenham a sua oposição.
Para já, não passam de potenciais candidatos, mas há nomes para todos os gostos, incluindo franceses, que colocariam as duas maiores instituições internacionais novamente sob comando francês, como aconteceu na primeira década deste século, quando Jean-Claude Trichet era presidente do BCE e Dominique Strauss-Kahn diretor-geral do FMI.
Entre alguns dos nomes sobre os quais se especula estão François Villeroy de Galhau, governador do Banco de França e Benoit Coeuré, membro da comissão executiva do BCE (termina o seu mandato no final do ano), ambos na lista de potenciais sucessores de Mario Draghi, nos quais também estavam outros dois governadores que poderão entrar na lista: o finlandês Olli Rehn e o alemão Jens Weidmann. Nenhum destes nomes manifestou até ao momento vontade ou disponibilidade para assumir o cargo. Jens Weidmann até fez saber, através do seu porta-voz, que está muito satisfeito no cargo que desempenha.
Outras hipóteses levantadas na Europa, como finlandês Erkki Liikanen (um dos favoritos na corrida ao BCE), Klaus Regling, o diretor-geral do Mecanismo Europeu de Estabilidade e o próprio Mario Draghi, estão acima da idade limite: o escolhido não pode ter mais que 65 anos.
Já a búlgara Kristalina Georgieva cumpriria todos os requisitos. Europeia, embora de leste — um grupo de países sem qualquer cargo de topo na UE nos próximos cinco anos –, é economista, foi comissária europeia e é atualmente diretora executiva do Banco Mundial.
Mais importante, Kristalina Georgieva tem uma aliada de peso: Angela Merkel. A chanceler alemã colocou-a na corrida a secretária-geral da ONU à última hora, traindo o apoio dado oficialmente a António Guterres, mas a búlgara sofreu uma derrota pesada. O seu nome foi também sugerido como potencial sucessora de Donald Tusk no Conselho Europeu e de Federica Mogherini como Alta Representante para a Política Externa, mas voltou a não ser escolhida.
De fora da Europa, volta a surgir o nome do mexicano Agustín Carstens, que para além de ser presidente do Banco do México é também lidera o Banco de Pagamentos Internacionais, a instituição multilateral responsável pela supervisão bancária, detida por 60 bancos centrais mundiais e que tem como principal objetivo promover a colaboração, e a estabilidade monetária e financeira, entre estes bancos centrais. O Financial Times fala ainda da possibilidade de Mark Carney, o canadiano que lidera o Banco de Inglaterra, uma hipótese mais difícil porque deixaria as duas instituições nas mãos dos dois países da América do Norte.
Quem fica a mandar, para já, no FMI?
Até ser o escolhido o sucessor de Christine Lagarde, ainda sem data prevista uma vez que a francesa ainda não renunciou ao cargo, a gestão do FMI fica a cargo do seu até agora vice, o norte-americano David Lipton. O economista norte-americano, pela sua nacionalidade, não tem no entanto qualquer hipótese de suceder a Christine Lagarde, não só devido ao acordo tácito entre os EUA e a Europa, mas também porque o presidente do Banco Mundial já é um norte-americano.
David Lipton é o número dois do FMI desde setembro de 2011, e o seu mandato de cinco anos foi renovado em 2016, terminando agora em 2021. No currículo, o economista norte-americano tem alguns cargos de peso, especialmente na política norte-americana em alturas críticas para a maior economia do mundo.
David Lipton começou a sua carreira no FMI. Foi através do Fundo que, juntamente com Jeffrey Saches, atuou como conselheiro económico dos governos da Rússia, Polónia e Eslovénia entre 1989 e 1992, na transição destas economias para o capitalismo, durante a queda da União Soviética (que é dissolvida oficialmente no final de 1991).
Entre 1993 e 1998, David Lipton foi secretário adjunto e depois subsecretário do Tesouro durante a administração Clinton, trabalhando lado a lado com Larry Summers e sob a batuta de Robert Rubin, durante a crise asiática do final da década de 90, até ser substituído por Timothy Geithner.
Depois passou pelo setor privado, onde chegou a ser diretor-geral do Citigroup, foi nomeado para a Casa Branca durante a administração de Barack Obama, onde desempenhou os cargos de assistente especial do Presidente, diretor para os assuntos económicos internacionais no Conselho Económico Nacional (o principal grupo de conselheiros económicos do Presidente dos EUA) e ainda do Conselho para a Segurança Nacional, um dos mais importantes órgãos da administração norte-americana.
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