‘Taxa de talento’ de Trump é “janela estratégica” para atrair profissionais para Portugal

Cortar burocracia, fast track para vistos e a promoção de Portugal como centro de inovação a nível global são as sugestões de empreendedores, incubadoras e fundos para potenciar atração de talento.

Uma barreira de 100 mil dólares por um visto para trabalhadores estrangeiros especializados nos Estados Unidos poderá ser uma “janela estratégica” para atrair talento qualificado para Portugal ou colocar os profissionais no país na rota de recrutamento remoto de tecnológicas internacionais. Mas para que esta janela não seja uma porta fechada, há que ‘cortar’ na burocracia, acelerar vistos e reforçar políticas de acolhimento, defendem empreendedores.

Depois das tarifas comerciais, Donald Trump levantou um novo muro para a entrada no país: aumentou para 100 mil dólares os vistos H-1B. Destinado a trabalhadores especializados com formação superior, tipicamente em áreas como as tecnologias de informação, engenharia, matemática, finanças ou medicina, o visto é muito usado pelas tecnológicas americanas para atrair talento internacional. Só no ano passado os Servidos de Imigração e Cidadania dos EUA aprovaram 399.395 vistos H-1B, dos quais 141.205 foram para novos empregos e 258.190 foram renovações ou extensões.

Tarifa sobre talento: oportunidade para Europa e Portugal

“A estratégia dos Estados Unidos é tão disruptiva que a Europa deveria aproveitar, não só na atração de talento, pois continua a ser uma das geografias onde é mais interessante viver. Até aqui em Portugal, continuamos a receber pessoas com um perfil interessante, de riqueza, que querem vir morar e trabalhar a partir de Portugal. Agora, às vezes, temos mensagens muito mistas, não facilitamos essa atração de talento“, aponta Lurdes Gramaxo, em recente entrevista ao ECO.

Lurdes Gramaxo da Investors Portugal.

E a presidente da Investors Portugal não está só só nesta avaliação. “Esta decisão tem impacto direto na mobilidade global de talento altamente especializado. Ao tornar o acesso aos EUA menos viável, abre inevitavelmente espaço para que outros países se posicionem como alternativas atrativas. Num mundo em que a inovação e a competitividade dependem da capacidade de atrair e reter os melhores, esta medida representa uma oportunidade para mercados emergentes de talento, como Portugal“, considera Miguel Santo Amaro, fundador e CEO da Coverflex, fintech com presença em Portugal, Itália e Espanha.

Uma decisão “profundamente negativa” é como Márcia Pereira classifica esta decisão da Administração Trump. “Quem concebeu esta medida parece não compreender a realidade cultural e diversificada que sustenta o ecossistema empresarial norte-americano, em particular o tecnológico, que domina o índice NASDAQ”, reage a CEO da Bandora.

A fundadora da startup nacional, com planos de expansão nos Estados Unidos e de abertura de uma filial no país, explica porquê. “As tecnológicas têm recorrido historicamente a talento estrangeiro altamente qualificado porque reconhecem que a inovação e o pensamento disruptivo emergem de equipas diversas, multiculturais e com experiências distintas. Essa necessidade de recrutar não desaparece, pois existe também escassez na oferta: vai apenas alterar a forma como é concretizada. Muitas empresas vão optar por contratar diretamente nos países de origem, em regime remoto, ou até por criar polos de inovação e centros de competências fora dos EUA“, aponta.

Miguel Santo Amaro, cofundador e CEO da Coverflex.

Uma decisão que, no entender da empreendedora, terá como resultado “uma maior saída de capitais, menor consumo interno e perda de receita fiscal sobre o consumo”, aponta. Além disso, “para empresas que pretendiam abrir filiais e transferir colaboradores para os EUA, a medida contraria o objetivo inicial: formar localmente equipas norte-americanas, mas agora com know-how estrangeiro“, destaca.

Um travão à mobilidade do talento para o outro lado do Atlântico, mas que pode constituir-se uma oportunidade para Portugal? “Não acho que este problema em particular seja um benefício grande para Portugal. Portugal pode atrair pessoas pela qualidade do talento, o custo de vida, e o país bonito e tranquilo que temos. Quem iria para os EUA não vai passar a vir para Portugal assim de repente. Devíamos focar-nos nas nossas vantagens“, atira Humberto Ayres Pereira, cofundador da Rows.

Gil Azevedo tem uma visão distinta. “Uma das consequências será a deslocalização de algum do talento internacional para outras geografias. Neste sentido, para a Europa, e para Portugal, esta decisão é uma oportunidade para atrairmos hubs de inovação das grandes empresas com talento qualificado para o país“, defende o diretor executivo da Unicorn Factory Lisboa.

Gil Azevedo, diretor executivo da Unicorn Factory Lisboa.Hugo Amaral/ECO

E o mesmo acredita Vítor Ferreira. Para o diretor-geral da Startup Leiria, este imposto à importação de talento, não só não resolve a escassez de talento em Terras do Tio Sam, como tem como “efeito mais provável” a “aceleração do offshoring e do trabalho remoto, com equipas a serem montadas fora dos EUA“. “Num jogo global que premia ecossistemas abertos, isto é um sinal de fechamento com custos reais para a inovação”, atira.

Para Portugal, esta é uma janela clara em duas frentes. “Portugal como base remote-first para quem trabalha desde cá para empresas americanas — já hoje muitos profissionais o fazem, e esta medida empurra mais procura nessa direção”, equaciona. Mas também para as empresas nacionais “é hora de abrir o funil”, argumenta. Ou seja, “ir buscar talento brasileiro, indiano e de outros mercados, por via remota ou com relocalização quando faz sentido”.

“Portugal — e outros países europeus — devem encarar esta mudança como uma oportunidade. Já existem empresas de outsourcing e serviços partilhados que irão beneficiar, oferecendo soluções que contornam parte da burocracia e da rigidez laboral”, aponta Márcia Pereira. “O fator custo é altamente competitivo: em média, contratar um profissional qualificado em Portugal custa um terço do equivalente nos Estados Unidos. Isso coloca-nos numa posição atrativa, tanto para talento estrangeiro como para multinacionais que procuram novos destinos para os seus centros de operações“, diz a CEO da Bandora.

Márcia Pereira, cofundadora e CEO da Bandora.

 

“Com o custo dos H-1B a disparar, profissionais qualificados de países como a Índia, China ou até da Europa de Leste, que antes sonhavam com o ‘sonho americano’, vão olhar para alternativas europeias. Portugal já atraiu mais de 10 mil nómadas digitais desde 2020 através do visto D8, e hubs como Lisboa e Porto estão a tornar-se centros de startups. Imaginem: um developer de software do Brasil, farto de esperar por um visto caro nos EUA, a escolher Lisboa pelo golden visa ou pelo regime fiscal atrativo para não-residentes (NHR)”, reflete Miguel Alves Ribeiro.

O cofundador e CEO da sheerME mostra-se entusiasmado com essa ideia. “Já contratámos talentos internacionais para impulsionar a nossa app de bookings e wallet digital, e vemos o potencial: este influxo poderia acelerar o crescimento do nosso setor de wellness tech, que precisa de skills em data analytics e machine learning para personalizar experiências de utilizadores. Se bem gerida, esta “fuga” dos EUA poderia injetar milhares de milhões na economia portuguesa, fomentando inovação e emprego local”, afirma.

Atacar burocracia, criar condições para atratividade

Mas a questão-chave é ‘bem gerida’. O potencial de atração desse talento especializado poderá ser esbatido se o país não atacar a burocracia e os atrasos dos vistos. Com impacto nas empresas.

“Na minha experiência, recrutar um talento estrangeiro para a sheerME envolve não só aprovações fiscais demoradas, mas também a falta de clareza em incentivos como habitação subsidiada ou suporte linguístico”, descreve Miguel Alves Ribeiro. “Sem uma estratégia de atração mais ágil inspirada, por exemplo, no modelo estónio de e-residency, corremos o risco de ver esses profissionais optarem por Irlanda ou Países Baixos, onde os processos são digitais e rápidos. É frustrante: Portugal tem o soft power (qualidade de vida, costa atlântica, custo acessível), mas falha no hard power burocrático”, lamenta.

Miguel Alves Ribeiro, CEO da sheerMe.

Resultado? “No último trimestre, perdemos dois hires para a Irlanda por atrasos no visto. É um sinal: sem ação, Portugal arrisca-se a ser um ‘hub de passagem’ em vez de destino final. Mas com visão, podemos inverter isso”, considera o cofundador da wellness tech, com operação em Portugal e no Brasil.

Para ser uma verdadeira oportunidade, há que adotar uma “abordagem ousada e pragmática”, recomenda Márcia Pereira. “É essencial simplificar os processos administrativos de vistos e criar regimes fiscais competitivos que tornem o país atrativo para profissionais qualificados. Em paralelo, importa reforçar a promoção da marca Portugal, não apenas enquanto destino turístico, mas como hub tecnológico global, com custos competitivos e qualidade de vida”, sugere a CEO da Bandora.

“Portugal pode atrair recursos norte-americanos que façam o percurso inverso e se estabeleçam cá, desde que existam condições fiscais que incentivem a transferência de conhecimento e capitais. Combinando estes fatores, transformaríamos uma barreira nos EUA numa oportunidade estratégica para Portugal”, diz ainda a empreendedora.

“As empresas analisam diversos mercados e escolhem a localização dos seus hubs onde as condições são competitivas e os processos são eficientes. Se quisermos criar e atrair centros de elevado valor acrescentado em Portugal temos de garantir esta competitividade. Só desta forma Portugal pode beneficiar desta conjuntura e captar postos de trabalho altamente qualificados e reter também o nosso talento jovem”, aponta Gil Azevedo.

Como? Um ‘fast track‘ para vistos, simplificação de processos, “criar condições competitivas, evoluindo a ‘lei das startups’ para a ‘lei da inovação’, como forma de atrair e reter empresas que invistam em inovação e criem emprego em Portugal” e promover a marca Portugal como centro de inovação a nível global são as propostas do diretor executivo da Unicorn Factory Lisboa.

Vítor Ferreira, diretor-geral da Startup Leiria.

Portugal já tem políticas de atratividade de talento implementadas, com o HQV – visto D3 e o IFICI+, um regime fiscal que oferece uma taxa fixa de 20% de IRS para profissionais nas áreas de ciência, inovação e Investigação e Desenvolvimento (R&D), elenca Catarina Almeida Garrett, cofundadora da AGPC, organização que ajuda talento e empresas a entrar em Portugal.

Mas mais poderia ser feito. A começar por analisar as estratégias de outros países, como é o caso da Alemanha que tem o Cartão Azul Europeu — “emitido através de um processo rápido e com apoio à integração familiar, contrastando com o cenário nacional, em que a marcação de um agendamento pode demorar entre seis a oito meses” —; a Estónia — que lançou um “visto para nómadas digitais com acesso facilitado a serviços públicos e tributação simplificada, ao passo que em Portugal, embora exista um visto semelhante, a tributação já não apresenta essa simplificação” — ou a Irlanda que promoveu “parcerias entre multinacionais e universidades para atrair recém-licenciados estrangeiros, quando em Portugal ainda se verifica, em grande escala, o fenómeno inverso, com muitos jovens qualificados a emigrar”, ilustra Catarina Almeida Garrett.

Para Lurdes Gramaxo, Portugal tem de atacar de forma decisiva o atraso e a burocracia em torno dos vistos. “Quando um processo de regularização em Portugal demora dois, três anos às vezes… Há outras geografias na Europa a oferecer melhores condições, temos a Espanha, a Grécia, que tem um programa de atração de talento estrangeiro e dos vistos gold muito interessante”, alerta.

“Em relação aos Estados Unidos, somos o primeiro país da Europa e, provavelmente, considerado um dos mais seguros também, somos simpáticos, de um modo geral, recebemos bem, temos bom clima. Tudo facilita, mas se chegam cá, demoram três anos para regularizar as situações, têm dificuldades, entraves de toda a ordem, burocráticos. Enfim, há outros sítios melhores, não é?”, atira a presidente da Investors Portugal.

Catarina Almeida Garrett, cofundadora da AGPC.

Miguel Santo Amaro mostra-se otimista. “Temos condições que muitos profissionais procuram: qualidade de vida, segurança, estabilidade, uma cultura aberta e um ecossistema tecnológico em franco crescimento. É verdade que a burocracia tem sido um entrave no passado, mas também é verdade que este novo governo tem assumido a desburocratização como bandeira, com o Ministro Adjunto e da Reforma do Estado Gonçalo Saraiva Matias a liderar esse compromisso”, diz.

“Isso dá-nos sinais claros de que o país está atento e disponível para acelerar. O momento é agora: se Portugal souber simplificar processos e comunicar essa mudança de forma eficaz, podemos atrair talento altamente especializado que já procura alternativas fora dos EUA”, acredita o CEO da Coverflex.

“Portugal deve assumir esta oportunidade com uma visão estratégica. Acelerar processos de vistos especializados e simplificar a integração fiscal e laboral são passos fundamentais. Mas é igualmente importante reforçar políticas de acolhimento — desde programas de habitação até apoio na integração das famílias — e comunicar ao mundo que Portugal quer ser um hub global para talento”, acrescenta.

“O novo contexto internacional joga a nosso favor: se soubermos alinhar o discurso político com medidas concretas, temos tudo para transformar o país num destino de eleição para profissionais altamente qualificados e empresas que os querem acompanhar.”

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