A Confluência Lamacenta
Kuala Lumpur é uma daquelas cidades do futuro com o céu todo arranhado, feita por camadas estratigráficas que começam lá em baixo, onde os ratos comem os restos.
Não aterrei na Malásia, saltei do avião diretamente para uma piscina, no topo de um arranha-céus. Porque é que alguém faz uma piscina num arranha-céus? Ou melhor: porque é que alguém há de fazer um arranha-céus? E depois olhei à volta e levei com a resposta na cara, porque houve alguém que fez um antes. O arranha-céus tem a audácia de uma montanha e, como tal, é a arquitetura ao desafio. A partir do momento em que se faz o primeiro, vai ser impossível fazer o último.
Kuala Lumpur é uma daquelas cidades do futuro com o céu todo arranhado, feita por camadas estratigráficas que começam lá em baixo, onde os ratos comem os restos. Na verdade, começa antes disso, algures em 1857, quando os chineses para cá vieram explorar as minas de estanho.
Entretanto, a cidade foi crescendo a uma escala absurda. Vejamos, se a casa típica é três ou quatro vezes maior do que um ser humano, as Petronas Towers (452 metros) foram feitas à escala do Cristo Rei (28 metros) com pedestal incluído (110 metros). E, a não ser que sejamos um Jesus gigante de cimento, não faz sentido sequer tentar contornar um edifício destes.
Saí da piscina, tive de empurrar vinte miúdas a pousar e respetivos fotógrafos aquáticos, Kuala Lumpur autêntica está lá em baixo, o verdadeiro viajante tem de ir para o terreno.
O elevador galga vinte andares em meio minuto, o estômago sobe à cabeça, saio do hotel e levo com o bafo quente e húmido de um país com o ar condicionado avariado. À minha frente, um pequeno restaurante de rua — mentira, entre mim e o restaurante estão seis faixas de rodagem. Há uma passadeira aérea a cinco minutos a pé, ou seja, para atravessar a estrada vou precisar de uns 20 minutos. Desmoralizei! Isto não vai ser fácil.
“Tenksiiiii“, é como se chama um táxi aqui. “Mostre-me isto tudo. Leve-me às Batu Caves e à escadaria arco-íris onde os macacos roubam bênçãos aos hindus e os fiéis rezam dentro de um arranha-céus com 400 milhões de anos. Mostre-me a praça Merdeka que, só pelo nome, já inspira o postal, o jardim botânico, a Little India, a Chinatown, quero ver os bairros onde vive a gente local”.
Mas o tenksista só me queria mostrar centros comerciais e arranha-céus ou pior, centros comerciais dentro de arranha-céus, dizia que ia chover! “Ó homem, se eu quisesse ir ao Colombo, apanhava o metro, que merdeka é esta?!”
Deixou-me na Jalan Alor, cuja tradução deve ser “onde o turista come” e aí me sentei, numa cadeira baixa, entre baratinhas e roedores, para experimentar as delícias locais.
A boa notícia é que a Malásia deve ser o país com mais variedade gastronómica da galáxia. A má notícia é que são fascinados por mixórdias inenarráveis. A menos má é uma sobremesa de gelo, corante de uma flor azul, feijão vermelho, milho e uma espécie de vermes gelatinosos feitos de um vegetal, e sabe como se o empregado do restaurante tivesse despejado todos os restos de uma refeição para dentro do balde de gelo. Mas o pior nem é o famoso Cendol que os locais comem gulosamente. O mais revoltante é o infame durian, um fruto tão fedorento que tem de ser comido de luvas e cuja entrada está proibida em qualquer transporte e edifício da cidade. A textura é maravilhosa, o sabor é entre o delicioso e o podre, sabe a gelado de esgoto e não tenho a certeza de que seja coisa que se coma mas não há rei na Malásia como o durian.
Estava eu francamente enojada/maravilhada com a gastronomia quando rebenta uma chuvada diluviana. Aliás, isto não é chuva, é mar do céu. Em cinco minutos já tinha fugido toda a gente e, eu, debaixo de um chapéu desgraçado, à espera que passasse. Já chove há meia hora e tem de parar, não tem? O chão é um rio de lixo e lama, cheira a esgoto (ou a durian), os tenksis já não param, o caso está mal parado.
Encharcada até ao osso lá consegui ser rapinada por um tenksista espertalhão. “Shopping Mall?” pergunta ele, “no rain in shopping mall.”
“Não, homem, leve-me para o hotel”, digo eu, derrotada e a arrotar durian com feijão.
Chego finalmente ao topo do arranha-céus, o morno jacuzzi tem um toldo de vidro que o protege da chuva, deixo-me cair para a confusão de bolhas e olho de longe para o rio em que se transformou a cidade. O empregado do bar, ri-se do meu ar deplorável e diz: “Sabes o que significa Kuala Lumpur? Confluência lamacenta!”
Porque é que alguém faria um arranha-céus, mesmo? Ahhhhhhhh.
“Crónicas asiáticas” são impressões, detalhes e apontamentos de viagem da autora e viajante Mami Pereira. O ECO publica as melhores histórias da viagem à Ásia. Pode ir acompanhando todos os passos aqui e aqui. Leia ou releia também as “Crónicas africanas” e as “Crónicas indianas”.
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