A hipocrisia do mérito
Uma sociedade que chama mérito à capacidade de pagar por uma vantagem competitiva não está a premiar a justiça, está, tão-somente, a dar um nome elegante à perpetuação do privilégio.
A meritocracia tornou-se o dogma central das sociedades modernas. Apoiada na premissa de que o esforço individual dita o sucesso, ela encontra na educação o seu maior bastião, um espaço de competição teoricamente justa e igualitária. Mas, por trás dessa promessa de recompensa ao talento, resta uma dúvida fundamental: A meritocracia escolar promove a ascensão social ou apenas legitima as desigualdades de partida?
O livro “The Highest Exam: How the Gaokao Shapes China”, de Ruixue Jia, Hongbin Li e Claire Cousineau, oferece-nos um ponto de partida revelador. Paradoxalmente, é num país de doutrina comunista que encontramos aquele que é, talvez, o sistema meritocrático mais radical do mundo. O Gaokao, o exame nacional de acesso ao ensino superior na China, mobiliza milhões de jovens que, independentemente da origem, disputam lugares nas melhores universidades com base numa única prova, rigorosa e padronizada. Para muitos, sobretudo os oriundos de meios rurais ou pobres, o Gaokao representa uma possibilidade real de mobilidade social. Não por acaso, o exame é visto como um pilar de legitimidade do próprio regime.
Contudo, os autores expõem o reverso da medalha. A pressão extrema, a redução da educação à preparação para um teste (teaching to the test) e a reprodução indireta de desigualdades, visível no acesso díspar a escolas de topo e explicações privadas, revelam os limites de uma meritocracia puramente formal. Mesmo num sistema altamente disciplinado e aparentemente imparcial, o ponto de partida continua a pesar mais do que gostaríamos de admitir.
Esta ambivalência ilumina um debate que se tornou central nas democracias ocidentais. Michael J. Sandel, no seminal “The Tyranny of Merit”, argumenta que a meritocracia, longe de promover apenas justiça, gera arrogância nos vencedores e humilhação nos vencidos. Quando o sucesso é atribuído exclusivamente ao mérito individual, os que ficam para trás não são apenas “derrotados”; são considerados culpados pelo seu próprio fracasso. A desigualdade deixa de ser vista como um problema coletivo para ser interpretada como um défice de talento ou de esforço pessoal.
Para Sandel, a educação desempenha aqui um papel decisivo. Ao transformar credenciais académicas em medida absoluta de valor social, reforça-se uma hierarquia simbólica que separa os “merecedores” dos “outros”. Impõe-se, assim, um alerta: esta lógica corrói o bem comum, pois enfraquece a solidariedade e a noção de que todos contribuem, de formas distintas, para a nossa vida coletiva.
Em Portugal, Pedro Santa Clara personifica a transição deste debate do plano teórico para a urgência prática. Através da sua “obra” (da refundação da Nova SBE à importação de modelos disruptivos e gratuitos como a Escola 42 e o TUMO), demonstra que a excelência não tem de ser inimiga da inclusão. Pelo contrário, a sua tese central é a de que a igualdade de oportunidades só se concretiza através da “democratização da exigência”. Para Santa Clara, um sistema que abdica da avaliação rigorosa e da responsabilização trai a sua promessa de mobilidade social, prejudicando desproporcionalmente os alunos de meios desfavorecidos, que dependem exclusivamente da escola para competir. Num país com produtividade estagnada, defende que o verdadeiro serviço público não é baixar a fasquia para que todos passem, mas garantir que todos, independentemente da origem, tenham acesso às ferramentas exigentes necessárias para subir na escada social.
Nesta mesma linha, é pertinente convocar as reflexões recentes de Ray Dalio, que tem insistido na importância do bem comum como condição de estabilidade económica. Dalio alerta para o facto de sociedades excessivamente desiguais, ainda que formalmente meritocráticas, acabarem por minar a coesão social e a confiança nas instituições. Quando os sistemas educativos recompensam sistematicamente os mesmos grupos, criando vencedores permanentes e perdedores recorrentes, a perceção de justiça desvanece-se. Para Dalio, o teste de uma sociedade saudável reside na capacidade de garantir que o progresso beneficia um espectro alargado da população. Aplicada à educação, esta visão reforça a ideia de que o mérito só é legítimo quando inserido num quadro que promova mobilidade real e dignidade para todos.
Urge, portanto, desmascarar a hipocrisia do discurso meritocrático nacional. Em Portugal, o expoente máximo dessa contradição num sistema dito “social progressista” reside no fluxo financeiro das elites: Famílias investem fortunas em colégios privados para garantir médias de acesso elevadas, assegurando que os seus filhos ocupem depois as vagas nas melhores universidades públicas, tendencialmente gratuitas.
O resultado é uma perversa transferência de rendimento, onde os impostos de todos subsidiam a formação superior de quem já nasceu privilegiado. A educação, apresentada como elevador social, funciona assim como um sofisticado sistema de triagem que valida desigualdades à partida. Se a meritocracia quiser ser mais do que um slogan moralmente conveniente, terá de deixar de servir como absolvição para quem chegou ao topo e condenação para quem ficou para trás.
Uma sociedade que chama mérito à capacidade de pagar por uma vantagem competitiva não está a premiar a justiça, está, tão-somente, a dar um nome elegante à perpetuação do privilégio.
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