A inépcia europeia
O gps europeu esteve avariado durante seis dias e quase ninguém deu por isso. Porquê? Porque quase ninguém confia nele.
O Galileu foi anunciado com pompa e circunstância há quinze anos, prometendo um sistema de geoposicionamento mais moderno, mais fiável e mais seguro que o GPS americano. Já custou aos bolsos europeus 10 mil milhões de euros, o que é insuficiente para o fazer funcionar. O projeto nasceu em 2004 mas só ficou operacional em 2016, tendo tido no ano passado 100 milhões de utilizadores – que recorrem à redundância do sistema americano para garantir qualidade no produto final.
O sistema GNSS começou a falhar no dia 11 e entrou em colapso em menos de 48 horas, só tendo sido completamente reatado no dia 17. Foram seis dias de silêncio de um sistema que se quer crucial para a afirmação económica, militar e estratégica da União Europeia. De umas informações vagas sobre problemas nos satélites passou-se para a confirmação de falhas nos centros de controlo em terra, sem informações detalhadas nem previsão de reatamento de serviço.
Esta história é paradigmática dos problemas da afirmação europeia, cruzando-se aqui várias questões. Primeiro que tudo, o da gestão e da transparência: não só parece que ninguém sabe o que se passou – o que é verdadeiramente inconcebível – como ninguém quer dar a cara pela falha.
O défice democrático da União Europeia também se nota nestas coisas… Depois, há o problema da competência: estará a Europa preparada para criar e gerir um sistema tão complexo, ou alguém andou a poupar onde não devia, mantendo a ambição pública mas tornando inviável todo o esforço científico?
A seguir, o problema geoestratégico não é de somenos: A União sonha com uma política externa comum, com um exército partilhado e com intervenções autónomas, o que faz todo o sentido. Se há algo que a última década demonstrou é que a segurança da Europa não pode depender de um parceiro instável como os EUA, que não partilha necessariamente o alinhamento ideológico europeu – o que obviamente também não acontece com a China.
Ora, se a Europa precisar de ir para a guerra vai pedir emprestado o GPS a quem? O que é garantido é que, dos 18 mil milhões que as ciências espaciais têm alocados para a próxima década, parte terá de ser encaminhada para o reforço do Galileo. O objetivo é que este esteja totalmente operacional em 2020 e que possa ser um rival de qualidade ao americano GPS e aos sistemas semelhantes postos em prática pela Rússia e pela China.
Este projeto é demasiado grande para falhar, mas o fantasma do Quaero continua bem presente na mente de muitos. Este Quaero foi uma ideia peregrina nascida em 2010 em França, que depois foi adotada pela Alemanha com a bênção da União Europeia, e que previa fazer nascer um concorrente direto ao Google. A coisa durou três anos, custou mais de cem milhões de euros e foi misericordiosamente abatida por inércia estrutural.
É claro que, para cada Quaero, há um CERN, uma ESA e um EuroHPC, verdadeiros casos de sucesso numa Europa que sabe fazer muita e boa ciência. E também é claro que a UE já elegeu a ciência como prioridade para a próxima década, o que faz todo o sentido especialmente tendo em conta o peso da ciência no dinamismo económico.
A Europa é boa em grandes projetos de obras públicas, incluindo as científicas. Já não o é a incentivar um ecossistema de inovação com expressão comercial, e os seus responsáveis conhecem bem as razões: porque é impossível manter a coerência ao nível do ensino e da cultura na União, porque a relação do empreendedorismo com a universidade é mínima ou não existente e porque os mecanismos de apoio ao capital nos EUA e na China são inviáveis na Europa.
Isto implica que, à escala, a Europa perderá sempre. E isso implica viver num mundo digital em que os gigantes dessa economia são todos não-europeus. Mas isso não pode é tornar aceitável falhar com um projeto com a dimensão do Galileo, porque ele representa muito mais do que o poderio tecnológico – representa a autonomia de todo o bloco europeu, que precisa de mais e melhor liderança.
Ler mais: Este livro ganhou o Don Prize para melhor publicação na área da ciência, tecnologia e política em 2017, principalmente porque fornece uma nova visão sobre as questões que cruzam a inovação e o poder. Em The Poliitcs of Innovation o autor Mark Z. Taylor parte de uma série de estudos de caso para explicar porque é que algumas nações são melhores que outras a inovar e desafiar o consenso sobre a importância das instituições na inovação. É uma leitura provocadora que dá pistas para entender como se pode promover mais e melhor inovação no espaço comum europeu.
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