A internet global já não existe
O sonho de uma internet verdadeiramente global morreu. Com ele foi o ideal de ter o mesmo conhecimento acessível a todos os cidadãos do planeta.
A maior vítima da crise da globalização é a internet livre. O mercado aberto de ideias e a liberdade de discurso digital já não existem. A geopolítica e a geoeconomia trataram de subverter o modelo global.
Hoje há três grandes modelos de internet: o chinês, que centraliza a censura dos conteúdos e subsidia a inovação tecnológica com imensos recursos de capital; o americano, que liberaliza toda a atividade empresarial e não tem em conta a proteção do utilizador; e o europeu, que dá primazia à regulação para manter sob controlo os gigantes tecnológicos.
A internet global morreu de morte forçada, à força das nações poderosas e das suas políticas anti-liberais. Com uma diferença: o modelo europeu surge por reação aos abusos de posição dominante por parte das empresas e não por uma vontade em impor um qualquer modelo – hoje a única forma de preservar a privacidade e segurança dos cidadãos-consumidores parece ser a regulação do espaço digital, um processo em que a União Europeia está ainda a dar os primeiros passos. O “direito a ser esquecido” e as multas aos gigantes tecnológicos por ilegalidades várias (incluindo fuga aos impostos) foram o início de um processo legislativo que já evoluiu para a responsabilização das plataformas com o regulamento da proteção de dados e a nova diretiva sobre a cópia privada – e vem mais legislação a caminho, no sentido de reforçar as proteções à privacidade e a defesa contra manobras de desinformação. Será uma internet menos anárquica e espontânea, mas onde os cidadãos serão mais protegidos de abusos – e onde há também menos inovação, reforçando o preconceito da Europa (mais ou menos) estagnada.
O modelo americano promove o efetivo monopólio do sistema por parte de algumas empresas, sem respeito pelos direitos dos cidadãos nem pelo funcionamento do mercado. É interessante ver como um plano criado para fomentar a livre iniciativa foi tomado de assalto pelos vencedores, que agora controlam o sistema e impedem qualquer concorrente de se aproximar – transformando o modelo capitalista num monopólio abençoado pelas autoridades centrais. Esse modelo há-de implodir, como antes implodiram as indústrias automóvel e de telecomunicações Made in America – ou pelo menos forçar uma crise sistémica como a que surgiu há dez anos no sistema financeiro. Até lá, será prudente ter um olhar crítico sobre o mesmo – até porque o crescimento económico que era tão sedutor já se confirmou ser apenas para alguns e sem efeitos práticos na vida do cidadão comum.
O conceito chinês é mais assumido e transparente: para assegurar a modalidade original de capitalismo sem democracia, Pequim usa a tecnologia como forma de controlo efetivo dos seus cidadãos. É a confirmação de um estado distópico em que a informação é ativamente censurada e os cidadãos são controlados nas suas ações quotidianas sem que isso provoque comoção especial. A mistura exótica de nacionalismo e crescimento económico constante assegura estabilidade ao modelo centralizador e, pior, garante competitividade global a este capitalismo chinês. Ao contrário do que décadas de pensamento ocidental garantiam, o enriquecimento da população não conduziu a exigências de maior liberdade. Que agora os gigantes americanos estejam dispostos a abdicar dos seus princípios para venderem a alma à China é a confirmação da falta de ética de uns e de outros.
Na internet, os estados centrais venceram a batalha da globalização e quem perdeu foram os defensores da liberdade – e não é inconcebível que este fenómeno se repita. Os russos adorariam ter uma rede moldada a seu gosto, tal como fações do mundo islâmico apreciariam censurar grande parte dos conteúdos da net que vão contra os princípios da sua religião. Tendo de escolher uma destas internets, a europeia é sem dúvida a melhor: é a mais tolerante e a que melhor protege os valores culturais da democracia. É a mais livre. Que para isso seja preciso exercer regulação efetiva é apenas um pequeno paradoxo do nosso tempo.
Ler mais: O melhor livro sobre o tema ainda é o Splinternet, que já tem quase três anos. Nele, Scott Malcomson explica como a geopolítica e o comércio fragmentaram a rede e mataram a sua génese global. O livro não inclui estes últimos desenvolvimentos, mas em troca oferece uma perspetiva histórica que recua mais de cem anos para explicar como surgiu a ideia da rede global e como ela evoluiu para o que é hoje.
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