A porta dos fundos da supervisão
Quando os supervisores são complacentes e incompetentes fica escancarada a porta para que no futuro se repitam casos como o do BES e o das offshores do BCP.
A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) abriu uma porta para que a KPMG pudesse sair do escândalo do BES com alguma dignidade e o menor dano reputacional possível. Prestou um mau serviço ao país e aos mercados. É por essa mesma porta que no passado entraram aqueles que hoje são corresponsáveis, por ação ou inação, pelo colapso do BES e pelo escândalo das offshores do BCP.
Em abril deste ano, o Banco de Portugal condenou a KPMG e alguns dos seus auditores “por infrações especialmente graves”. Ficou provado, segundo o regulador, que a KPMG e os seus responsáveis tiveram conhecimento dos riscos da carteira de crédito do BES Angola e de como isso poderia afetar a operação do BES em Portugal.
Perante a gravidade desta condenação, a CMVM, como lhe competia, abriu um processo administrativo de reavaliação de idoneidade dos auditores em causa. Ficámos esta quinta-feira a saber que este processo não deu em nada porque, — naquilo que parece ser um “arranjinho” de última hora pouco digno de um supervisor, — os auditores em causa pediram o cancelamento dos seus registos. Como tal, o processo de avaliação de idoneidade ficou sem efeito.
Perguntar-me-ão, mas afinal o que poderia fazer a CMVM? Das duas, uma: ou não aceitava o pedido de cancelamento dos auditores e levava até ao fim o processo de avaliação da idoneidade ou, aceitando, tinha a obrigação de publicitar a conclusão da avaliação da idoneidade mesmo que juridicamente não pudesse aplicar a pena de perda de registo porque os próprios se anteciparam.
Se esta via escolhida pela CMVM fizer escola ninguém neste país vai alguma vez perder a idoneidade porque, no dia em que souberem que a vão perder, antecipam-se e entregam a “carteira profissional”. E daqui a dois anos, como prevê a lei, podem voltar a tentar pedir o registo.
Perguntar-me-ão, mas não vai dar ao mesmo? Não, não vai. Auditores que por iniciativa própria e de forma “voluntária” pedem para cancelar o registo não é a mesma coisa que serem impedidos de exercer a profissão por não serem idóneos.
Além da questão reputacional que vem anexada a uma decisão de retirada de idoneidade, o ponto 2, alínea b) do artigo 48º da Lei n.º 148/2015 prevê sanções acessórias e inibições que vão para além da perda de registo.
O mais greve na decisão, ou não decisão, da CMVM sobre este caso é que no esclarecimento que fez ao mercado “remete o assunto” para uma comunicação no site da KPMG (com direito a link e tudo) e, pasma-se, nesse comunicado, a auditora afirma que esses profissionais são os melhores do mundo.
A KPMG enaltece o “brio, competência e dedicação” desses auditores, o “elevado sentido de responsabilidade” e ainda sublinha “o trabalho que, em colaboração com os supervisores, desenvolveram durante o designado ‘período crítico do BES’”. Ora esta suposta “colaboração com os supervisores” é precisamente o contrário do que disse o Banco de Portugal e foi aquilo que sustentou uma condenação dos auditores em causa e da própria KPMG.
Chegamos a esta comunicação da KPMG, cheia de encómios e glorificação dos auditores, reencaminhados pela CMVM, que desta forma parece secundar e credibilizar a versão dos factos da auditora.
Estes “arranjinhos” para que a KPMG saia com alguma dignidade deste processo pouco digno não são de hoje. Quem tem memória ainda se lembrará que quando a KPMG (sim, novamente a KPMG) foi condenada pela CMVM por violação das normas de auditoria no caso das “offshores” do BCP, também num processo de contraordenação muito grave, a condenação e a sanção nunca foram tornadas públicas para não causar danos reputacionais.
O processo só foi conhecido porque os jornalistas, por portas travessas, fizeram o seu trabalho. Coisa que a CMVM não fez na altura e não fez agora. Preferiu tratar a auditora com paninhos quentes. Quem ficou a arder foram os contribuintes.
Aliás, não se percebe como é que a nível contraordenacional, o Banco de Portugal já tenha feito o seu trabalho, já condenou, a KPMG já contestou e o processo está prestes começar a ser julgado em Santarém, e a CMVM — a quem cabe a responsabilidade primeira de supervisionar as auditoras — ainda não tenha chegado a uma conclusão sobre a condenação ou absolvição da KPMG no caso BES.
Para ter este tipo de regulação lenta e complacente — em que mesmo depois da casa arrombada não se trancam as portas — mais vale transformar a CMVM numa direção-geral. O que se perdia em independência se calhar ganhava-se em competência e escrutínio.
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