Comendadores & Choque Cultural

Portugal está habituado a viver na porta giratória entre Deus e o Diabo, entre a riqueza de alguns e a miséria de muitos, tudo a bem da Nação, da ostentação e da vaidade.

Há momentos em que o vazio do País brilha como um diamante ao sol. O Primeiro-Ministro está de quarentena; o Ministro dos Negócios Estrangeiros dá uma entrevista a despedir-se do Governo e outra a garantir que vai ficar no Governo até ao fim dos tempos; o Ministro da Administração Interna esgota o dicionário e as palavras com trânsitos contra o tempo político nas auto-estradas de Portugal; sabe-se também que existe um Ministro do Mar náufrago desde que tomou posse. Enfim, o tema da “remodelação” contribui de novo para o ruído da política nacional, quando Portugal tem o mais perfeito Governo da Europa. Disfuncional, descoordenado, esgotado politicamente, mas o mais perfeito Governo da Europa. Ou não fosse o iluminado Primeiro-Ministro a nova grande esperança do Projecto Europeu.

Com tanto ruído fica esquecido um cidadão morto no asfalto em pleno horário de trabalho. Portugal é um País classista, arrogante, labrego, cruel, pois quem não tem importância morre atropelado como um cão numa qualquer estrada paga com fundos da Europa. Não há beija-mão nem gravatas pretas na Basílica da Estrela.

Não convém esquecer os dramas da justiça ao estilo policial americano com prisões e sirenes, super-juízes e cauções de cinco milhões. Desta vez o alvo é o Comendador Coleccionador símbolo da classe empresarial portuguesa que, para além de contrair dívidas que não são dele, não produz um átomo de riqueza para a economia nacional. Mas que certamente produz muitos e incontáveis benefícios para a boa articulação entre a alta finança e a grande política, de outro modo não se percebe as condecorações atribuídas por dois Presidentes da República. A Colecção de Arte do Comendador é uma joia na mercearia, a miragem de uma garantia bancária, só não é reconhecida e apreciada como um dos poucos acervos de arte internacional de qualidade em qualquer parte do Mundo.

O País é assim e está habituado a viver na porta giratória entre Deus e o Diabo, entre a riqueza de alguns e a miséria de muitos, tudo a bem da Nação, da ostentação e da vaidade, dos negócios e das grandes vitórias políticas que resultam invariavelmente na derrota colectiva de uma Nação adiada.

Nas intermitências do ruído e do tempo, a pandemia cresce como um incêndio de Verão. O Governo vai reagindo com meia-vontade, os portugueses já só pensam nas férias, os políticos garantem que Portugal está num “período de transição”, não especificando o sentido e o resultado da transição. Regresso a confinamentos está fora de questão. Pois. Os portugueses no seu desleixo secular fingem que acreditam e queixam-se por não poderem ter uma “vida normal”.

No silêncio de um Portugal cercado por dentro, no silêncio de um País assustado, nas filas para administração das vacinas, vive-se a dúvida de uma gestão da pandemia que desconhece a frontalidade de um discurso directo, rigoroso, verdadeiro. O País precisa de um discurso político simples que sublinhe a impossibilidade de uma estratégia Covid Zero, restando como opção a gestão e o cálculo permanente do risco e da incerteza. A Nação exige que os responsáveis políticos digam e venham dizer que a vacina não é uma receita mágica que vai erradicar os zombies infectados e a quimera das mutações do vírus restabelecendo a normalidade e a regular dissipação nacional.

No silêncio de um Portugal inconsciente convém lembrar e sublinhar que as máscaras estão para ficar, que os contactos sociais devem ser escassos e controlados, que a etiqueta respiratória deve ser mantida e praticada como uma extensão natural do acto de respirar em público. A vacina é um elemento essencial, mas não é a bala de prata que vai excluir o vírus da circulação comunitária. A não ser que o vírus se dissipe e desapareça naturalmente como no caso da Gripe Espanhola que também não era Espanhola.

O que é necessário afirmar publicamente é que se vive uma situação global pandémica que configura um autêntico “choque cultural”. O vírus que veio de Whuan circula entre nós como uma espécie invasora, como um produto da circulação global de pessoas e de mercadorias, é quase uma situação surreal quando em Portugal e por todo o Mundo se respira o mesmo ar, o mesmo oxigénio, o mesmo agente patogénico. O “choque cultural” reflecte-se na suspensão da normalidade, na proibição dos pequenos e dos grandes gestos quotidianos, na persistência da incerteza, na erosão da segurança, no usufruto de uma liberdade tomada por adquirida para todo o sempre e agora ameaçada por tempo indeterminado. É missão da Comunidade Científica, é obrigação do Governo, reconhecer que existe uma nova antropologia nacional reflectida no “choque cultural” que enfrentamos mas que não queremos reconhecer. E na complexidade do “choque cultural”, há um Portugal em cada rua, há um País em cada cidade, há um antes e haverá certamente um depois. E o depois é uma responsabilidade colectiva.

O Mundo está em permanente mudança. Mas cada português deseja criar dentro do seu domínio um Estado com uma política privada, com regras, com partidos, com revoluções, tudo perfeitamente adaptado às suas rotinas, benefícios, intenções. O Mundo não é um lugar privado. O Mundo é a memória de todas as Utopias pessoais.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

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