Crédito Covid
No centro do pensamento mágico do Governo está o vazio e está vacina. Com a vacina ainda refugiada no oásis da tecnologia, resta ao Governo o vazio de ideias.
Em pleno regime democrático há três tipos de portugueses – os finados, os confinados e os mascarados. O Governo proíbe os portugueses de visitar os mortos, uma medida política que se percebe para não alimentar as crenças e os cultos espíritas, pagãos ou cristãos. Neste Novembro, os cemitérios serão jardins silenciosos e inspiração para poetas românticos. Quem sabe se num cantão mais esquecido não vamos encontrar uma vítima da Gripe Espanhola ao lado de uma baixa da Pandemia Covid – separados no tempo, mas unidos na morte. O Governo é insensível às ironias da vida e da política.
Depois temos os portugueses confinados, embora o Executivo tenha prometido que não iria confinar. Os confinados não falam nem com os mortos nem com os vivos, pois só podem falar entre confinados no perímetro regular estabelecido por decreto desconhecido e endereço reconhecido. É o País ao ritmo das celas unifamiliares, câmaras de eco em frente à televisão, viagens entre o quarto, a cozinha e a sala, uma aventura que tanto pode exponenciar os desejos de divórcio como despertar os desejos da paixão. As Conservatórias e as Maternidades que preparem por antecipação os afluxos pós-pandémicos. O Governo decreta confinamentos como quem decreta uma taxa sobre a vida de cada português.
Na rua permanecem os mascarados, uma multidão de olhos sem rosto que se cruza anónima na vertigem da cidade, que evita as aproximações mais calorosas, uma multidão que mais parece seguir o ritual de uma parada militar marcada pelo eco silencioso das ordens surdas que todos escutam. As ordens descem das alturas do Governo na forma de frequências específicas que só os humanos saudáveis conseguem ouvir. Qualquer infectado perde-se nas filas bem ordenadas, desespera, entra em pânico e é recolhido pelo Grande Comité Sanitário. Acontece o mesmo com os cães.
Esta divisão de classes entre portugueses é o resultado da omissão de um Governo que se limita a fazer propaganda e a debitar banalidades políticas. Algumas vozes superiores afirmam que a situação é igual por toda a Europa, que a pandemia alastra a um ritmo inimaginável, impossível de prevenir, conter e controlar. Este discurso é típico dos resignados, dos carreiristas, dos instalados, é um clássico da incompetência política que veste a farda da responsabilidade debruada com os galões da mediocridade. É fácil ser político em condições normais. É difícil ser político em condições excepcionais, onde não existe precedente, experiência acumulada, factores de comparação, práticas estabelecidas. Nesta circunstância o político tem de avaliar, tem de ponderar, tem de utilizar a imaginação e a criatividade no sentido de encontrar formas de intervenção política para proteger o bem comum e a segurança dos cidadãos. Esta pandemia tem contribuído para revelar a paralisia da imaginação política na Europa. Um Continente politicamente parado é uma Civilização politicamente morta.
A propósito destas reflexões, ocorre-me o romance de José Saramago intitulado “Ensaio sobre a Cegueira”. O romance acaba por utilizar o dispositivo de uma súbita e estranha pandemia para sublinhar a fragilidade das sociedades abertas, livres, democráticas. A mais aparente e estabelecida das normalidades pode simplesmente desaparecer pela acção de um factor externo e universal, transformando a liberdade em servidão e a democracia em ditadura. Os Governos cegos pela doença resvalam para o autoritarismo e acabam na solidão dos ditadores. A mesma solidão e o mesmo cansaço psicológico que domina os cidadãos numa letargia destrutiva e quase apocalíptica. A cegueira é comum a Governos e a governados.
Depois há ainda um factor que alastra como outra doença por toda a Europa. A tolerância relativamente à implementação de medidas restritivas da liberdade individual. Podia imaginar-se motins, revoltas, tumultos, mas a paz podre da doença infesta o ar político da Europa com gestos repetidos, políticas copiadas, casos crescentes, cuidados intensivos transformados numa floresta de sinais sonoros, com luminosidade electrónica, focados na direcção do Jardim Zoológico da morte. A Europa prefere a segurança da saúde pública e está disposta a pagar o preço da liberdade. Uma reacção naturalmente humana. Pois enquanto a vida de um cidadão é única e irrepetível, o mandato de um político é múltiplo e reprodutível. Esta assimetria é um sinal perigoso que alimenta o sonho de todos os poderes.
No centro do pensamento mágico do Governo está o vazio e está vacina. Com a vacina ainda refugiada no oásis da tecnologia, resta ao Governo o vazio de ideias que vai gerindo ao ritmo imperfeito da emergência e do curto-prazo. Ensino presencial, produção de sapatos por Zoom, montagem de móveis por Skype. Fechar a economia está longe das possibilidades nacionais, pois enquanto na Europa o cidadão enriquece e depois envelhece, em Portugal o cidadão envelhece e depois empobrece. Logo, quando o Governo fala em gestão do risco, os portugueses compreendem como gestão do medo. Politicamente esta pandemia não tem uma narrativa política, não tem um sentido, pois apresenta-se de forma crua e nua como uma ameaça existencial. Que diria o Governo se numa noite de Inverno um viajante lhe perguntasse – E agora?
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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