Crónica Cor-de-Rosa
Harry & Meghan estão perdidos entre o sufrágio das confissões e o escrutínio das obrigações. O amor romântico e o ideal da liberdade são os únicos factores que enquadram as respectivas existências.
Harry & Meghan é o tema e a “independência financeira” é a questão. O público de hoje aprecia um bom escândalo, sentimental, familiar ou financeiro. A Família Real Britânica tem tido uma contribuição relevante para esta deslumbrante biblioteca de pecados públicos e privados. Não pretendendo simular o papel do cronista social, o comentador político sente-se por vezes atraído pelo banal, pela futilidade, pelo vulgar que irrompe na pompa da realeza. Talvez por que na ficção das circunstâncias inúteis a realidade política e social brilhe com tanta intensidade que cega o anónimo circunspecto colado às revistas cor-de-rosa.
Walter Bagehot, editor da revista “The Economist” na segunda metade do século XIX, distingue na sua obra “The English Constitution” dois ramos essenciais à fábrica da Constituição – a “dimensão da dignidade” e a “dimensão da eficiência”. A Monarquia confere a dignidade ao sistema político, enquanto o Governo se debruça sobre a eficiência das decisões políticas. Dito de outro modo, a Monarquia é o elo que assegura a complexa legitimidade entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, entre o Parlamento e o Governo. Para todos os efeitos, o caso Harry & Meghan coloca em questão a dimensão da dignidade inscrita no papel da Família Real.
Vamos por partes. Diga-se que a Firma é a mais universal e eminente Família Real ainda em circulação nos tempos modernos. Esta reverência ultrapassa a História e a Política para entrar verdadeiramente no universo do mito. A Família Real Britânica é um arranjo político que consagra a compressão das práticas e dos costumes no tempo. Por analogia pode definir-se a Família Real como um mito composto por camadas sucessivas de significados e significações. Um mito pode e deve ter mil e uma interpretações, porque as pessoas que viveram e usaram a História ao longo dos tempos lhe foram atribuindo todas essas significações. Esta riqueza de significados é o segredo do poder de qualquer mito e é portanto o segredo do sucesso da Monarquia Britânica.
As Monarquias que se fizeram mito estão suportadas num conjunto de relações internas à Família Real que funcionam em circuito fechado. Cada membro da Família é um activo da Firma, um símbolo de renovação, um seguro e um investimento da Firma no seu próprio futuro. Poder e Privilégio à parte, um membro da Família Real é o que nasce e nasce para cumprir com o ser o que lhe é destinado pela hierarquia da Família. A liberdade de escolha é um princípio que coloca em perigo a lógica intemporal de uma estrutura familiar de poder e de propriedade que sustentam e suportam todo um sistema político. Ninguém pode ser membro da Família Real em part-time. No exercício interno de circulação de funções não existe a questão da “privacidade”, pois são activos públicos; nem o problema da “independência financeira”, uma vez que associada à função está uma dotação orçamental que concretiza na prática a Representação da Família Real.
Do ponto de vista político o caso Harry & Meghan é o clássico confronto entre o Liberalismo e a Monarquia. A tensão é entre uma visão individual centrada no desígnio e no exercício da liberdade, e a percepção de uma sensibilidade individual centrada no desígnio e no exercício de um dever para com uma instituição. Obviamente que as duas posições se colocam em extremos não conciliáveis, uma vez que assumir um dos valores é imediatamente prescindir do valor remanescente. Neste particular, as Monarquias são e devem ser implacáveis, pois é o princípio darwinista da adaptação e da sobrevivência que é posto em oposição ao horizonte da extinção.
Nesta circunstância o ponto relevante remete para o velho adágio que afirma que “O Amor é o Prazer; e a Honra é o Dever”. Harry & Meghan estão perdidos entre o sufrágio das confissões e o escrutínio das obrigações. Para a pequena sucursal em dissidência, o amor romântico e o ideal da liberdade são os maiores e únicos factores que enquadram as respectivas existências. Na realidade, a circunstância de atribuir ao amor romântico esta extravagante e exclusiva importância na vida humana tem uma origem absolutamente moderna e decididamente revolucionária. Há um certo deslumbramento por um sentimentalismo redescoberto, mais o culto de uma genuinidade imaginada, mais uma teoria geral do optimismo que só podem ser suportados por uma percepção distorcida da realidade. Uma distorção que é a resultante de uma vida assinalada pelo Privilégio, em Harry; uma distorção que é a resultante de uma vida assinalada pelo Culto da Celebridade, em Meghan. O Mundo real das pessoas normais é apenas o Mundo real das pessoas normais.
Ninguém antecipa uma Crise Constitucional. Mas na Política, todos aqueles que se afastam do precedente ou da razão para abraçarem a utopia do romance, acabam por optar por um labirinto de insanidades que os conduzem ao desvario de uma realidade onde não existe uma qualquer autoridade convencional para além das suas próprias consciências. No final fica a ideia desconfortável de que cada novo tempo tem por instinto primário fazer desaparecer tudo o que existe de melhor em outros tempos e em outras circunstâncias. O amor parece dar lugar a um fluxo de eternos recomeços, ao fluido da eterna ignorância, à fatalidade do eterno esquecimento.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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