Descentralização sem poder é centralismo disfarçado
Reformas que aliviam o centro sem fortalecer a periferia acabam sempre por falhar politicamente, financeiramente e institucionalmente.
A descentralização tornou-se, na última década, uma das expressões mais consensuais da política pública portuguesa. Evocada como sinónimo de proximidade, eficiência e modernização do Estado, foi apresentada como uma reforma estrutural inevitável. No entanto, terminado mais um congresso da Associação Nacional de Municípios Portugueses, o balanço é difícil de contornar: em Portugal, aquilo que foi efetivamente descentralizado não foi o poder, mas sobretudo a despesa.
O Estado central aliviou-se de encargos permanentes, preservando quase intacto o controlo político, normativo e financeiro sobre as funções transferidas. Aos municípios coube a execução quotidiana, a gestão do descontentamento local e a responsabilidade política perante os cidadãos, frequentemente sem meios adequados nem verdadeira margem de decisão. A descentralização portuguesa acabou por se transformar numa externalização de problemas.
A educação é um exemplo claro. As autarquias passaram a gerir edifícios, transportes, refeições e pessoal não docente, mas continuam sem qualquer influência relevante sobre currículos, organização pedagógica ou planeamento estratégico da rede escolar. Na saúde, herdaram centros de saúde envelhecidos e responsabilidades de manutenção, sem poder real sobre a organização dos cuidados, a gestão de recursos humanos ou a articulação com o setor social e privado. Na ação social, multiplicaram-se competências operacionais, muitas vezes sem integração eficaz com a Segurança Social e sem reforço proporcional de recursos.
Em todos estes domínios, o padrão repete-se: o poder central define políticas, regras, tetos e prioridades; o poder local executa. Quando algo falha, a responsabilidade é municipal. Quando algo funciona, o mérito é nacional. Isto não é descentralização. É desconcentração administrativa sem autonomia.
O debate ocorrido no congresso tornou esse problema explícito. Luís Montenegro afirmou que o poder central tem de estar “mais próximo” e o poder local “mais forte”. A formulação é politicamente apelativa, mas institucionalmente ambígua. Um poder central mais próximo não pode significar um poder central mais presente na decisão local. Caso contrário, não se reforça o poder local, neutraliza-se. Ao afastar definitivamente a regionalização do horizonte político, ficou ainda mais evidente que a descentralização municipal é hoje a única via para aproximar decisões dos cidadãos. Mas essa via permanece incompleta.
Não por acaso, uma das ideias mais consensuais do congresso foi a de que a competência para decidir é o verdadeiro cerne de qualquer modelo de descentralização. Sem autonomia decisória, não há responsabilização; sem responsabilização, não há eficiência; e sem eficiência, a descentralização transforma-se num exercício meramente retórico.
A fragilidade financeira do modelo agrava o problema. As transferências associadas às novas competências assentam em critérios médios, frequentemente desatualizados, que ignoram dinâmicas demográficas, envelhecimento, dispersão territorial e vulnerabilidade social. Municípios com maiores necessidades estruturais acabam penalizados. Em vez de corrigir assimetrias regionais, este modelo tende a reproduzi-las.
A promessa de uma nova Lei das Finanças Locais, anunciada para integrar o Orçamento do Estado de 2027, será por isso decisiva. Sem uma revisão profunda da autonomia financeira municipal (incluindo maior previsibilidade, adequação territorial e capacidade de decisão sobre receitas) qualquer reforço de competências continuará a ser financeiramente frágil e politicamente desequilibrado.
O congresso deixou ainda claro que a reforma do Estado não pode ser pensada sem um contributo essencial das autarquias. Mas essa afirmação só terá conteúdo real se for acompanhada por uma mudança de atitude do poder central: confiar, delegar e aceitar perder controlo. Reformar o Estado não é apenas redistribuir tarefas, é redistribuir poder. Enquanto isso não acontecer, a descentralização continuará a ser vivida por muitos municípios como aquilo que é hoje: Não uma reforma estrutural do Estado, mas uma transferência silenciosa de encargos. E reformas que aliviam o centro sem fortalecer a periferia acabam sempre por falhar politicamente, financeiramente e institucionalmente.
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