Festa Vermelha
A Festa do Avante é um momento triste disfarçado pelo som estridente dos concertos e dos discursos. Os amanhãs deixaram de cantar e deixaram o PCP transformado num mausoléu a céu aberto.
A Festa do Avante não é uma rentrée política. A Festa do Avante é o último festival de Verão com uma banda residente chamada PCP. Os convidados debitam aos decibéis as novidades do mundo e garantem o internacionalismo world music. Mas a mensagem política é garantida pelo colectivo do PCP, uma espécie de banda tributo que recita os mesmos temas todos os anos. Os “dias mágicos” são um parque de diversão nostálgico para celebrar um projecto político desfeito pela história. Este ano a montanha russa está esgotada com os fantasmas da Ucrânia.
Esta coincidência de eventos e de datas diz muito da condição do partido e do estado da nação. A grande celebração cultural e ideológica, a grande missa campestre do comunismo português perdeu todo o impacto político porque o país emancipou-se das ideologias e opta pelo secularismo hedonista dos grandes festivais de música. Música sem mensagem política. Música com rituais colectivos. Música que é a celebração de um mundo pós-comunista em que a diversão representa a exclusão da política.
Para os comunistas a Festa do Avante é uma versão ideológica da revista Playboy que se frequenta para ler os ensaios. As fotografias da Playboy são uma ilustração ao estilo de um vício burguês para despistar os inimigos do partido. As fotografias da Playboy são a forma de converter burgueses em comunistas. Afinal a sexualização da imagem feminina é uma arma ao serviço da causa comunista. Camaradas de todo o mundo, dispam-se em nome do socialismo!
O actual Secretário-Geral do partido nunca se confundiu tanto com um militante anónimo. Vive com o salário mínimo, treme com a revisão das prestações ao banco pelo empréstimo para a casa, tem uma origem operária, foi funcionário do partido, montou muito contraplacado para construir a Cidade Comunista para glória do povo e salvação da Humanidade.
Mas o contabilista ideológico, o comissário político, o “controleiro” na legalidade é mais funcionário que cidadão. E porque é mais funcionário que cidadão, nas sondagens a playlist do partido é cada vez menor. O PCP é a alegria de um refrão transformado num grito politicamente desesperado. E ainda sobram muitas palavras de ordem para um mundo que não existe.
O PCP é um partido órfão de um país e órfão de um Império. O país é a Rússia. O Império é a União Soviética. Leio algures que em russo existem duas palavras para a ideia de verdade – “istina” e “pravda”. “Istina” implica a evidência de uma “verdade religiosa ou espiritual”. “Pravda” tem uma conotação associada a uma concepção de “justiça”.
No discurso do partido o foco da “justiça social” está sempre presente, logo politicamente o partido pretende representar uma versão “pravda” da política. O mesmo partido que se recusa a condenar a invasão da Ucrânia como se recusou a denunciar Budapeste e Praga – esta é a versão de uma visão política marcada pela “verdade religiosa ou espiritual” de uma ideologia.
Esta contradição insanável entre uma ideia de justiça e a verdade religiosa e espiritual de uma ideologia está a destruir a fábrica histórica do partido. Porquê? Porque ignora a realidade. Porque escolhe a ideologia. Para o PCP, a Ucrânia não é uma realidade. Para o PCP, a Ucrânia é uma ideologia.
O PS gosta de celebrar os serviços do PCP à consolidação da democracia portuguesa. Mas o que o PS talvez esteja a celebrar é uma espécie de “compromisso histórico” que levou à formação da defunta “geringonça” que abriu as avenidas da maioria absoluta. A história repete-se e o PCP foi desta vez o “idiota útil” do projecto de poder do PS.
A Festa do Avante é um momento triste disfarçado pelo som estridente dos concertos e dos discursos. As bandeiras, as T-shirts do Che Guevara, as Avenidas Lenine que estão ao serviço da sobrevivência política e que não são o caminho para os amanhãs que cantam. Os amanhãs deixaram de cantar e deixaram o PCP transformado num mausoléu a céu aberto.
O PCP é hoje um objecto político não identificado marcado pela “pseudociência” do passado, orientado por “generalizações históricas”, projectado por uma cartilha de causas e de argumentos que revelam a ruptura de toda uma filosofia política. A “entropia” e a “decadência” interna que o partido sofre são a consequência social de um partido que não aceita qualquer “solução liberal” ao mesmo tempo que deixou de acreditar na “revolução socialista”.
O que acontece a um partido revolucionário que não acredita na “revolução socialista”? Organiza uma revolução por minuto em todos os momentos da Festa do Avante e vive a ilusão de um mundo que não acontece com a alegria triste de um parque de diversões. Não interessa o discurso público para além da óbvia e imediata sobrevivência política. E sobre o ruído que se eleva da Festa do Avante, os drones ucranianos organizam os comboios para o futuro.
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