Kabul é um Marine
A debilidade da América não está tanto na ascensão de uma Potência rival, mas reside no vácuo de poder que a América deixa por onde passa.
Um atentado suicida é uma festa, uma celebração em que se diz adeus à esperança e onde os escolhidos praticam o massacre das multidões. São como sacerdotes no templo dos infiéis e que usam a porta das orações para rebentar até aos céus todos os que rejeitam. Explosivos, carros armadilhados, kalashnikovs, e o puro arbítrio do ódio e da desumanidade. No caos de Kabul infectado pela derrota de uma aventura de vinte anos, o aeroporto é o alvo de todos as câmaras e de todas as conspirações, o aeroporto é o último posto Ocidental na direcção do qual converge o desespero, o medo, o pânico dos afegãos que um dia acreditaram na Democracia ou nos Direitos Humanos ou em qualquer coisa que lhes devolvesse a banalidade e a prosperidade de uma vida normal. Alguém tem notícias do Livreiro de Kabul?
Num corredor imundo e inundado pelo esgoto a céu aberto bem junto ao aeroporto, os militares levam a cabo a última das missões, uma espécie de evacuação que em tudo se confunde com uma fuga desesperada para um destino desconhecido desde que seja Ocidental. Estranho o instinto de sobrevivência humano, mais estranho quando a sobrevivência depende de quem parte e os abandona. Mais estranho ainda quando toda a confiança motivada pelo desespero desagua naquele corredor mágico controlado pelos Ocidentais. Decadente, degenerado, traidor, culpado, imperialista, expansionista, o Ocidente ainda resiste como a última referência de uma ideia de Civilização.
O mesmo corredor imundo e inundado pelo esgoto a céu aberto transforma-se num fim de tarde numa exposição macabra de restos humanos, colapsa com as ruínas de Kabul num depósito de desperdícios humanos dispersos, braços, pernas, mãos, olhos fechados, gritos esforçados, uma espécie da grande zoologia da Humanidade descarnada e coberta pelo vermelho vivo do sangue. E treze Marines mortos.
Os gritos de Kabul e o silêncio dos Marines mortos tocam a imaculada perfeição da Casa Branca. Mas da Casa Branca o silêncio ganha a espessura espessa de um momento histórico. Os écrans das grandes cadeias de televisão enchem a tarde com despachos do Inferno e notícias do Purgatório. No Afeganistão não circulam jeans nem t-shirts, mas respira-se o ar tóxico dos explosivos que combinam a etiqueta medieval com o terror das novas ideologias da Salvação. Os smartphones misturam-se na confusão dos tempos com a tecnologia das explosões, a eficiência das armas de assalto, tudo recrutado ao serviço do Islão apresentado como a única marca global no grande mercado das ideias. O Afeganistão atrasado, periférico, irrelevante, está simplesmente transformado no epicentro da atenção do Mundo civilizado.
Vivemos dentro das imagens. E dentro das imagens vivem as ideias. Com as imagens tentamos procurar compreender o Mundo, mesmo quando não existe sentido, razão, explicação para a realidade. A nossa construção das imagens, a nossa imaginação, funciona como uma tentativa de encontrar um nexo, um último vestígio de esperança que funciona como um elemento de libertação. Novas imagens podem erradicar as velhas imagens, mas do Afeganistão saem novas velhas imagens que se libertam do labirinto dos tapetes de oração em direcção ao Paraíso. E o Paraíso é a morte, a viagem das almas na forma de pássaros verdes que se libertam dos corredores de acesso ao aeroporto. Ao longe a silhueta de um C-17 cruza os céus no sentido Ocidental.
Finalmente o Presidente dos Estados Unidos fala à Nação e dirige-se ao Mundo. É uma figura frágil, marcada pela emoção e pelas muitas memórias, mas não é o Presidente de uma América confiante, consagrada, vitoriosa, virtuosa. É o Presidente de uma América humilhada, enfraquecida, em retirada, o Presidente que não encontra uma frase histórica para assinalar o momento histórico, o Presidente que não consegue inspirar a Nação Americana, o Presidente que não devolve confiança ao Mundo e aos Aliados. Com um minuto de silêncio é o Presidente que transforma uma sala da Casa Branca numa extensão simbólica do Cemitério Militar de Arlington. Percebe-se a boa intenção, mas regista-se o alcance do gesto político como a projecção de um momento de fraqueza – o Império a sangrar no coração dos Marines mortos. Não há ameaças que possam apagar esta imagem e esta ideia.
A aventura do Afeganistão começa no topo das Torres Gémeas. Curiosamente, numa espécie de testemunho de um Mundo mais previsível, existe um vídeo dos Depeche Mode em que a banda interpreta o “Enjoy the Silence” no telhado de uma das Torres com o Sol de Nova Iorque no apogeu do poder hegemónico dos Estados Unidos. Hoje podemos talvez escrever que tanto pode ser o silêncio dos inocentes como o silêncio dos culpados. O silêncio do Presidente está nas duas categorias com o complemento da incompetência e da impotência. As Torres Gémeas acabaram por colapsar em confronto com uma ideia e um plano pensado e saído do Afeganistão. Este é o princípio da história. Mas ainda não é o fim da história. A debilidade da América não está tanto na ascensão de uma Potência rival, mas reside no vácuo de poder que a América deixa por onde passa. E numa perigosa ausência de uma vontade de Poder.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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