Mudanças na contratação pública: quem semeia ventos, colhe tempestades…
Vivemos um tempo em que tudo parece valer para permitir ao Estado despender as verbas oriundas da União Europeia e ultrapassar as dificuldades ao nível da falta de formação dos intervenientes.
Assistimos, na passada semana, à publicação do novo Decreto-Lei n.º 78/2022, de 7 de novembro, diploma cujo fito principal passa por um conjunto de alterações às designadas medidas especiais de contratação pública e, simultaneamente, ao próprio Código dos Contratos Públicos.
No que tange com as alterações promovidas às ditas medidas especiais de contratação pública – criadas através do já conhecido Decreto-Lei n.º 30/2021, de 21 de maio –, a principal nota de destaque vai para a criação de uma norma que contempla um novo regime excecional de empreitadas de conceção-construção. Por breves traços, invertendo a excecionalidade atribuída a esta tipologia de contratos no âmbito das regras gerais de contratação pública, veio permitir o legislador português a inclusão, num único contrato, das prestações atinentes à conceção (leia-se, elaboração do projeto de execução) e à execução de uma obra pública, quando nos encontremos perante contratos que se destinem à execução de projetos financiados ou cofinanciados por fundos europeus.
Pois bem, será verdade que esta possibilidade tem vindo a ser cogitada a cada proposta de revisão do Código dos Contratos Públicos, sempre sob as mais ferozes críticas das ordens profissionais respetivas – com especial ênfase para a Ordem dos Arquitetos e para a Ordem dos Engenheiros –, designadamente por entenderem que tal regime redunda numa inevitável fragilização da posição assumida pelos projetistas e da independência que se espera existir entre aquele que concebeu um determinado projeto e aquele que terá sido incumbido de o executar. Mais recentemente, o próprio Tribunal de Contas, enquanto instância a quem compete o controlo da legalidade – e do mérito? – da despesa pública, assumiu ter “todas as objeções” face a esta recente alteração legislativa, que diz ser “dificilmente compatível com as garantias de ampla concorrência, de ponderação de custo-benefício em sede de contratação pública e de boa prossecução do interesse público”.
Mais uma vez, entendo que o legislador colocou acima da verdadeira defesa do interesse público outro tipo de bandeiras políticas, como a famigerada “simplificação” ou “modernização” administrativa. Sob tais chavões tão árduos de rebater, assistimos, nos últimos anos, a mudanças legislativas que deixam tão mais a desejar quanto os recados europeus a que temos sido sujeitos, com eventuais – dir-se-ia, expectáveis – sanções adjacentes, pelo menos ao nível da credibilidade e do compromisso nacional com o projeto europeu.
Por outra banda, este recente diploma governamental veio também promover uma série de alterações ao próprio Código dos Contratos Públicos, entendendo-se tais mudanças como de caráter tendencialmente duradouro e com suposto intuito meramente “clarificador”.
Neste segundo conjunto de modificações legislativas, assumem particular relevância a manifesta ampliação do leque de possibilidades que permitem à entidade adjudicante promover, junto dos concorrentes a um determinado procedimento, o suprimento de irregularidades (alegadamente formais, pois discordamos da classificação) das suas propostas, assim como a introdução da obrigatoriedade de, em determinados contratos, os trabalhadores afetos à execução do mesmo serem detentores de contrato de trabalho.
Confesso algum tom de revolta, nomeadamente por se revelar contrário ao bom senso, que se possa assumir que a falta de assinatura por quem tem poderes para vincular o operador económico proponente possa ser considerada uma formalidade não essencial – especialmente se tomarmos em linha de conta que, em bom rigor, estaremos perante uma declaração de vontade que é manifestada por alguém que, pura e simplesmente, não o poderia fazer. Mas, mais grave, será permitir que esse lapso possa vir a ser suprido na pendência do procedimento, uma vez que tal prerrogativa significará, de facto, que a vinculação de um concorrente à proposta que apresentou dependerá, afinal,… da sua vontade em suprir esse “lapso” – e não, conforme pretendem as regras, da sua pretérita vontade de concorrer.
Vivemos um tempo em que tudo parece valer para permitir ao Estado despender as verbas oriundas da União Europeia e ultrapassar as dificuldades ao nível da falta de formação dos intervenientes da contratação pública. Deixo, contudo, a pergunta cuja resposta os nossos descendentes melhor avaliarão e cujo sentido se reconhece como assumidamente duplo: mas a que preço?
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