O ano de 2021 e os primeiros abalos ao Estado Parafiscal
Antecipa-se que 2021 ofereça alguns dos primeiros abalos ao modelo (descontrolado) de Estado Parafiscal que, entretanto, proliferou, com forte repercussão nas opções de política fiscal e orçamental.
I. O Estado Parafiscal como febre de uma patologia fiscal
Por via de tal alusão aludimos, sobretudo, à degenerescência do modelo tradicional de Estado Fiscal, que se vê confrontado com um conjunto de metamorfoses impostas às suas formas tradicionais de financiamento, algumas das quais colocando em causa, e de forma preocupante, pressupostos basilares do Estado de Direito Democrático, pautado por critérios de coerência e racionalidade prática na legitimação das soluções fiscais.
Nessa medida, o modelo de Estado Parafiscal pauta-se por uma (excessiva) subordinação das opções de política fiscal à necessidade de otimizar, sustentar ou até mesmo acudir a centros de despesa com alguma expressão setorial, em setores geralmente sujeitos a regulação setorial (energia, banca, setor farmacêutico ou indústria dos dispositivos médicos, de entre outros).
Poderá dizer-se, nessa medida, que o modelo de Estado Parafiscal apresenta dois traços identitários:
- Em primeiro lugar, uma total sobreposição das preocupações de índole financeira ou creditícia de curto-prazo face às necessidades de natureza estrutural e de longo-prazo – com uma invulgar prevalência do Fiscalismo sobre o próprio Direito Fiscal.
- Em segundo lugar, um refúgio legislativo em denominações ancoradas na categoria ampla das “contribuições financeiras”, com o intuito de procurar um regime constitucional mais flexível para figuras que, em termos de regime, deveriam ser reconduzidas aos impostos.
A tal acresce, em quase todos os casos, uma natureza supostamente “extraordinária” que, em nenhum dos casos conhecido, foi objeto de qualquer respeito por parte do legislador, que se limita a prorrogar os respetivos regimes ano após ano, em cada Orçamento do Estado.
Esta técnica do decisor público tem merecido uma excessiva tolerância por parte dos tribunais – inclusive do Tribunal Constitucional – antecipando-se agora, até por força de desenvolvimentos doutrinais ou jurisprudenciais ocorridos no espetro comparado, que este cenário possa conhecer novas e muito substanciais alterações.
II. A década de 2010-2020 e as expressões tentaculares do Estado Parafiscal (energia, dispositivos médicos, banca…)
Às contingências económico-financeiras experienciadas pelo Estado Português após o ano de 2011 vem-se somando a contínua proliferação de novos centros de despesa setoriais, designadamente ao nível de estruturas com a natureza de entidade reguladora, instituto público ou, ainda mais recentemente, património autónomo (geralmente sob a forma de fundo público).
Este movimento, que está na génese do dito Estado Parafiscal, leva à criação de redutos ou “nichos” dentro dos quais grupos específicos de sujeitos passivos são responsabilizados pelo financiamento de despesas às quais são totalmente alheios e que, em muitos desses casos, não têm efetiva conexão com prestações ou benefícios que lhes possam ser imputáveis.
Os exemplos são da mais variada índole e apresentam um racional comum, ficcionando o decisor público um determinado tipo de responsabilidade de grupo para, a posteriori, fazer incidir sobre os respetivos membros ou elementos desse grupo o encargo tributário associado.
E tal sucede independentemente de estar em causa um grupo homogéneo ou de existir um efetivo benefício imputável ao referido grupo ou aos respetivos membros, como seria próprio de tributos com a natureza de contribuição financeira (e, bem assim, dos tributos que, no espetro comparado, apresentam uma morfologia semelhante).
Os exemplos mais expressivos são, em termos respetivos:
- A dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional e respetiva imputação aos sujeitos passivos da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), criada em 2014 – cuja gravidade nos parece acrescida, já que este tributo passou a onerar, desde o ano de 2019, o setor das energias renováveis, cujo contributo para a transição energética (incluindo o segmento do Hidrogénio Verde) é sobejamente reconhecido.
- A dívida do Sistema Nacional de Saúde (SNS) com medicamentos e respetiva imputação aos sujeitos passivos da Contribuição Extraordinária sobre a Indústria Farmacêutica (CEIF), criada em 2015;
- A dívida do mesmo SNS com dispositivos médicos e respetiva imputação aos sujeitos passivos da mais recente Contribuição Extraordinária sobre os Fornecedores da Indústria de Dispositivos Médicos (CEDM) – cujo regime inicial previra a afetação da respetiva receita a um fundo público que nunca conheceu a luz do dia e agora é (aparentemente) substituído pelo próprio Orçamento do SNS;
- A estabilização dos saldos do regime geral da Segurança Social e a respetiva imputação sobre os sujeitos passivos do Adicional de Solidariedade sobre o Setor Bancário (ASSB), um tributo que, por várias razões de ordem técnica e conceptual (que, inclusive, levaram pelo menos três Estados a recusar um modelo semelhante) não passa de um “falso” adicional da já instituída Contribuição sobre o Setor Bancário.
Por aqui se podem antecipar os desafios que 2021 oferecerá em relação a qualquer um destes tributos, relativamente aos quais ainda não existe qualquer decisão judicial de fundo que, em particular, tenha observado a própria evolução dos respetivos regimes (ao longo dos seus anos de vigência) e, sobretudo, escrutinado todos os contributos doutrinários que se vêm debruçando sobre tão complexa e interessante matéria.
III. O ano de 2021 como “momento-gatilho” e o papel do Tribunal Constitucional
Sendo certo que o legislador dispõe de uma significativa margem de escolha e conformação legislativa, não pode resumir-se ao estatuto de um executor mecânico das normas constitucionais, em especial as que revelam uma íntima conexão ao domínio fiscal.
Nesse sentido, em recente Acórdão, versando sobre matéria fiscal, referiu o Tribunal Constitucional que “tal espaço de conformação não é infinito”.
Esta realidade não é, de modo algum, dissonante face ao que vem sucedendo no espetro comparado.
Efetivamente, podem aí encontrar-se várias decisões com um impacto muito significativo no estabelecimento de limites ao modelo de Estado Parafiscal a que nos referimos, salientando-se, de entre outras, a decisão do Tribunal Constitucional Italiano que declarou a inconstitucionalidade do adicional de 5,5% sobre o imposto sobre o rendimento das sociedades para uma ampla gama de entidades a operar no setor energético e, ainda que forma bastante mais difusa, mas não menos impressiva, a decisão do Tribunal Constitucional Espanhol que analisou a conformidade constitucional das designadas “prestações patrimoniais não-tributárias” e se referiu à opção legislativa em consideração como uma verdadeira “pirueta jurídica”.
Também o Conselho Constitucional Francês tem, pelo menos, duas decisões em que analisa o fundamento putativamente extraordinário ou excecional de um tributo energético, concluindo pela respetiva desconformidade constitucional.
Entre nós, merece destaque o Acórdão do Tribunal Constitucional que analisou a conformidade constitucional do regime que criou a CESE, no que se reportara ao seu primeiro ano de vigência, correspondente ao exercício de 2014.
Pese embora a nossa discordância face às principais conclusões do referido Acórdão, conforme já escrevemos em obra científica dedicada ao tema, entendeu o referido Tribunal Constitucional que «se o legislador qualifica e designa ab initio um tributo como “extraordinário”, é porque o seu fundamento está numa circunstância ou razão excecional, que “exige” a sua instituição com a configuração que o legislador lhe dá. De tal forma, ainda que a lei não estabeleça expressamente um limite temporal para tal tributo, o facto é que uma tal qualificação indicia que o mesmo tributo não será para manter indefinidamente, ou não será para manter indefinidamente nos termos e com a conformação jurídica que recebeu – será, nesse sentido, “provisório”».
Por esta via, o Tribunal Constitucional confirma-nos que o período de legitimação de tributos designados pelo próprio legislador como “extraordinários” é necessariamente limitado e pode ser revertido caso em anos seguintes, com a mesma nomenclatura “extraordinária”, a realidade subjacente já não o consinta.
Antecipa-se, nesse sentido, que 2021 ofereça alguns dos primeiros abalos ao modelo (descontrolado) de Estado Parafiscal que, entretanto, proliferou, com forte repercussão nas opções de política fiscal e orçamental almejadas pelo legislador.
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