O código de conduta é uma treta
A Comissão Europeia demorou três anos a perceber que o código de conduta voluntário que assinou com as empresas de redes sociais vale zero. Mas continua a insistir nele.
Em 2018 foi anunciado um código de conduta entre a Comissão Europeia e as plataformas digitais. Cheio de boas intenções, previa eliminar as notícias falsas e garantir mais qualidade no espaço público. Como não implicava qualquer sanção, foi rapidamente assinado por todas as plataformas sociais, que até a usaram como medida de relações públicas. Agora os representantes da comissão perceberam que se calhar a coisa não serviu de muito. Não é novidade. Já há um ano que se sabe que o Covid-19 foi acompanhado por uma infopandemia e que as plataformas digitais não estão a fazer o suficiente para eliminar os problema, tendo até sido responsáveis pela sua amplificação. E este facto foi acompanhado por dezenas de relatórios e análises que confirmam o discurso de ódio está a crescer, as mentiras se espalham com facilidade e a qualidade do espaço público está a degradar-se em consequência. Então a comissária Jourova decidiu agora reforçar esse mesmo código com mais umas alíneas que o associam à nova ferramenta legislativa da União, o Digital Markets Act. Não fará qualquer diferença.
É essencial afirmar que o código de conduta original era uma treta e não vai ser esta nova proposta a melhorá-lo. Criar comités de discussão e forçar as entidades privadas a agilizar a capacidade de resposta só vai continuar a contornar a questão. A única forma de resolver o problema do espaço público digital é mudar o incentivo da economia digital e atacar o problema real: a exploração publicitária desenfreada que destrói a privacidade, assassina a inovação e polui irremediavelmente o espaço público. Aliás, logo a seguir à apresentação da Comissão, três países decidiram publicar uma carta conjunta que está cheia de críticas. Alemanha, França e Holanda exigem mais ação, no que já foram acompanhados pela Espanha e pela Dinamarca. A razão para estas críticas é muito simples. na área da regulação digital, tudo o que seja voluntário está simplesmente condenado ao insucesso. Estas empresas foram construídas, e cresceram, a explorar todas as lacunas na lei e nos hábitos que lhes permitem ainda hoje explorar as deficiências do espaço público – comprometendo-o ainda mais. A sua única motivação é o lucro, especialmente se ele puder ser assegurado por mecanismos esconsos que escondem a real motivação dos serviços apresentados aos utilizadores.
As chamadas Big Tech juntam os piores hábitos das indústrias poluentes, das tabaqueiras e dos gigantes monopolistas do passado. Vejamos: tal como a Exxon e a Gazprom, abusam do seu poder sem qualquer consideração pela destruição do meio ambiente, que é reduzido a um mero efeito colateral; exatamente como a Philip Morris e a Purdue, pagam para condicionar a produção intelectual de informação contra os seus interesses e manipulam o espaço público a seu favor para adiar os inevitáveis processos; e, da mesma forma que a Microsoft e a AT&T sempre ameaçaram com a desgraça caso fossem partidas aos bocados, também temem o fim dos seus monopólios. Igualmente, a única coisa que vai funcionar contra estes monstros é a regulação. Estas empresas precisam de ser forçadas a pagar os impostos, a ser multadas pelas consequências danosas para as sociedades em que atuam e a serem partidas quando a sua dimensão exceder os limites do razoável. Tudo isto ocorre em nome da cidadania, da proteção do espaço público e da defesa do consumidor – três fatores que estão expressamente incluídos no mandato da Comissão Europeia.
Há três fatores que explicam a inação de Bruxelas: até 2016, era a absoluta incompreensão do problema, visto que os decisores não estavam suficiente alerta para a questão; desde há cinco anos, as únicas coisas que explicam a inação europeia são o receio de ir contra a narrativa dominante com acusações de censura e de prejudicar a inovação. Ambos os receios são sensatos, mas não fazem sentido neste caso. A moderação do espaço público será sempre exercida, e o que estes anos demonstram é que as plataformas digitais só o sabem gerir para seu próprio benefício e em prejuízo óbvio das sociedades onde atuam. A necessidade de não prejudicar a inovação é também uma evidência, mas estes monstros instalados estão longe de o ser: os inovadores não estão confortavelmente sentados em escritórios estilosos em Silicon Valley à espera de serem chamados para testemunhar no Congresso americano ou no Parlamento Europeu, estão antes em pequenos espaços de cowork ou em pequenos cubículos caseiros a tentar resolver problemas antes que sejam esmagados pelos concorrentes gigantes.
No último ano, a pandemia também ajudou à inação, especialmente devido ao aumento da dependência das plataformas digitais. Mas essa teria sido precisamente a razão para sermos mais exigentes com quem manda no espaço público onde todos somos forçados a mover-nos. É óbvio que qualquer pessoa que queira estar ativa no mercado de trabalho e ter uma vida social necessita de um smartphone para o fazer e de viver parte do seu dia em ambiente digital. Mas esse espaço obriga efetivamente qualquer participante a ser violentado para lhe aceder – e é isso que tem de mudar urgentemente. Enquanto cidadãos, temos direito a usufruir de um ambiente não poluído, a proteger a nossa privacidade, a ser informados dos riscos nocivos do consumo de determinados produtos e de ser defendidos enquanto consumidores contra os excessos empresariais. No meio digital, estamos expostos e somos vítimas de todos estes abusos. E os poderes públicos, que deviam agir, quase nada fazem para resolver isto. Não é com códigos de conduta voluntários que lá vamos.
Ler mais: Quem ainda tenha dúvidas sobre os propósitos destrutivos de Silicon Valley fará bem em ler este Terms of Disservice: How Silicon Valley Is Destructive by Design. O autor é um antigo consultor do Facebook e da Casa Branca, o que o habilita bem para avaliar as questões de cidadania relacionadas com os gigantes digitais.
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