O dia da Marmota
De há uns anos para cá que a apresentação dos sucessivos OE me parecem momentos exactamente iguais ao do dia da marmota: a pompa e a teatralidade alimentada por batalhões de jornalistas.
Existe um filme hilariante que gosto de revisitar de tempos a tempos. Chama-se o dia da marmota (Groundhog Day) que conta a história de um jornalista arrogante (protagonizado pelo impagável Bill Murray) que, destacado a uma cidade do interior dos EUA para cobrir um evento anual em torno das capacidades de previsão meteorológica das marmotas, se vê enredado numa espécie de feitiço do tempo, que faz com que repita indefinidamente o mesmo dia, desde que acorda até que deita, até aprender que só mudando o seu comportamento poderá alterar o rumo dos acontecimentos.
Perguntar-me-ão (justamente) o porquê da menção cinematográfica ao dia da marmota nesta publicação de especialidade, quando me convidaram a escrever sobre o tem, sério, da Proposta de Lei do Orçamento do Estado para 2022?
Pode ser apenas resultado de deambulações de uma mente demasiado criativa, mas a verdade é que de há uns anos para cá que a apresentação dos sucessivos Orçamentos do Estado me parecem momentos exactamente iguais ao do dia da marmota: a pompa e a teatralidade alimentada por batalhões de jornalistas, espicaçados por dias a fio de notícias e debates sobre alterações cirurgicamente passadas de dentro para a opinião pública; a entrega da pen ao cair do pano pelo Ministro das Finanças ao Presidente da Assembleia da República; mas, sobretudo, a sensação de que a montanha pariu um rato. De que todos são iguais e de que será sempre assim até que decidamos inverter o ciclo vicioso que lhe está na génese.
Dir-me-ão, com razão, que os constrangimentos de ordem orçamental que todos conhecemos – uma despesa pública inflexível e asfixiante, que limita o mais bem-intencionado dos governantes -, os compromissos assumidos perante os parceiros europeus e a atenção dos mercados à sustentabilidade da dívida exigem que os orçamentos sejam conservadores e prudentes, deixando margem a uma cativação de despesa que permita alcançar as metas estipuladas sem necessidade de orçamentos rectificativos.
É verdade. Mas isso não justifica tudo. Porque isso seria desculpabilizar os responsáveis por todos estes anos de governação pelo estado a que chegaram as contas públicas e, sobretudo, pela falta de rumo da economia do País. Mas porque isso significaria, também, assentir, acriticamente, na génese programática que está na origem das diretrizes traçadas pelo governo para o documento, na qualidade da política fiscal praticada e do (des)acerto das alterações legislativas introduzidas, ano após ano, no sistema fiscal.
E estes são documentos políticos. Porventura os mais importantes de toda uma legislatura.
E o que nos diz esta proposta de Orçamento? Bom, diz desde logo que, à semelhança do que tem acontecido de há uns anos para cá, os orçamentos são instrumentos de arrecadação de receita, por via da qual se pretendem alcançar objectivos políticos.
Um orçamento marcadamente ideológico que procura, às custas do agravamento da carga fiscal incidente sobre as costas largas dos mesmos de sempre – os odiados “ricos”, que suportam já uma carga fiscal confiscatória, somada a pornográfica taxa do último escalão do IRS à silenciosa tributação indirecta sobre o consumo –, e dos consumidores de bens facilmente taxáveis – os malditos automóveis de que grande parte da classe média não se consegue despojar distribuir, aqui e acolá, benesses fiscais e aumentos salariais pouco significativos, sem que se lhes descortine qualquer visão especial que não objectivos políticos de curto prazo.
Um orçamento que despreza por completo os anseios e as necessidades das empresas e dos agentes económicos, e acentua o peso do Estado, como elemento central da política económica. Que, no único pífio incentivo ao investimento empresarial, no contexto económico em que nos encontramos, estipula, como condição da sua fruição a não distribuição de dividendos – no fundo, a razão de ser de qualquer empresa -, deixando bem clara a visão do governo sobre o papel dos empresários na geração de riqueza.
Um orçamento imediatista, que, na ânsia de arrecadar, se abstrai em absoluto de qualquer estímulo à poupança, antes optando por estrangular um pouco aqueles que ainda se encontravam em condições de aforrar.
Um orçamento que despreza o papel dos mercados de capitais na economia e que, em contraciclo, mas com evidentes dividendos políticos, pretende atacar as chamadas mais-valias especulativas (luxos de ricos) sem cuidar de estudar previamente os efeitos perversos, quer económicos, quer mesmo constitucionais, da imposição de um englobamento parcial apenas para determinados valores de rendimento.
Temo, enfim, com isto, que o próximo Outono nos traga mais um dia da marmota. Mas ainda espero – porque a esperança é a última a morrer – um dia acordar num diferente amanhã.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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