O futuro do trabalho (público)
O teletrabalho veio para ficar, mas para que tudo isto seja aproveitado com efectiva vantagem são os utentes dos serviços públicos que terão de estar no topo das prioridades.
O teletrabalho é hoje uma realidade incontornável para uma franja muito significativa da sociedade. Indiscutivelmente, a pandemia tratou de acelerar a transição do modelo tradicional de organização do trabalho para um modelo à distância e digital, que já se fazia sentir em alguns nichos e para algumas elites, mas que agora se encaminha no sentido de se tornar o novo normal. Em Portugal, a exemplo do resto do mundo, a situação não é diferente, tendo o teletrabalho tomado recentemente um novo impulso à boleia da obrigatoriedade decretada pelo Governo (ainda que sujeita a determinadas circunstâncias) até ao final do ano. Mas será que este novo normal na organização do trabalho está para ficar?
A questão do teletrabalho está em discussão tanto no sector privado como no público. No sector privado, o modo híbrido parece ser (tentativamente) a solução de compromisso. Relativamente ao sector público, acaba de ser divulgado o estudo “A Adaptação dos Modelos de Organização do Trabalho na Administração Pública Central durante a Pandemia COVID 19: Dificuldades e Oportunidades”. Trata-se de um estudo da Direcção Geral da Administração e Emprego Público (DGAEP), que teve origem num inquérito realizado em Janeiro. Entre as conclusões apresentadas há duas que saltam à vista.
- Primeiro, os inquiridos sentem que a sua produtividade não foi afectada pelo teletrabalho.
- Segundo, contam-se muitos mais inquiridos que observam mais vantagens no teletrabalho, face às desvantagens, do que o contrário.
O estudo da DGAEP tem naturalmente as suas limitações. A principal baseia-se no facto de o inquérito ter sido realizado apenas junto dos trabalhadores da administração pública. Um estudo mais completo, um que tivesse a ambição de avaliar a questão da produtividade, teria de contemplar também a perspectiva dos utentes. Se estes tivessem sido ouvidos, talvez a percepção sobre a produtividade não tivesse sido a mesma. As dificuldades no agendamento de serviços básicos como uma simples renovação do cartão de cidadão são um exemplo de como os alegados ganhos de produtividade poderão não passar de um erro de percepção dos próprios trabalhadores (instigado pelo design do inquérito que suporta o estudo). De resto, do inquérito resulta uma dúvida não satisfeita: como é que se mede a produtividade da função pública?
O estudo da DGAEP permite, contudo, aferir o grau de impreparação da administração pública relativamente ao teletrabalho. Tudo começa na incipiente experiência com a modalidade. De acordo com o inquérito, apenas 1,4% do universo de trabalhadores inquiridos teria alguma experiência de teletrabalho antes da pandemia. Isto apesar de o programa do Governo (conforme referido no documento) prever “o estímulo do trabalho à distância, assente nas tecnologias de informação e comunicação”. Depois, temos a questão da falta de meios informáticos. O estudo diz-nos que 37% dos trabalhadores não receberam quaisquer meios para o desempenho de teletrabalho. A ministra defende-se dizendo que gastou 10,8 milhões de euros. Mas não havia mais um milhão ou dois para chegar a todos?
A impreparação não reside somente na falta de meios, reside também na falta de estratégia rumo à digitalização da administração pública. A conclusão é dos próprios inquiridos. Segundo se escreve no documento, [para] “a maioria dos dirigentes superiores entrevistados, a introdução do teletrabalho como nova modalidade de execução do trabalho nos serviços da Administração Pública não implicou uma revisão estratégica da organização nem dos instrumentos de gestão, tendo antes exigido uma adaptação do ponto de vista da operacionalização das atividades profissionais dos trabalhadores” (p.28). Ou seja, o risco está no seguinte equívoco: a inserção de instrumentos digitais sobre um paradigma ultrapassado.
O desafio é fazer da digitalização um meio a fim de um novo paradigma na administração pública. Um paradigma caracterizado pela ausência de fricção na entrega dos serviços públicos. Uma nova abordagem que acabe com o modo reactivo com que a administração pública é servida em Portugal, que acabe com os formulários e linhas telefónicas, passando a oferecer os serviços de forma proactiva. Em vez de serem os cidadãos a andarem atrás dos serviços públicos, deveriam ser os serviços públicos a irem ao encontro dos cidadãos. O caso dos apoios às empresas é ilustrativo. O Estado tem os dados das empresas – através do fisco, da segurança social, e de outros registos públicos. Então, para quê obrigar as empresas a submeterem candidaturas, que demoram, se o Estado poderia fazer como noutros países e disparar automaticamente mediante (auto) confirmação informática dos critérios de elegibilidade?
A digitalização é também uma oportunidade para requalificar a administração pública. A autonomia pessoal que o teletrabalho permite tem de ser acompanhada da valorização das pessoas que se destacam pela positiva. Isto obrigará a que também no sector público seja instituída a cultura de resultados que hoje é comum nas melhores empresas privadas. Não será um desafio fácil, mas certamente haverá por esse mundo fora boas práticas que sejam passíveis de implementação em Portugal. Ao mesmo tempo, a digitalização poderá vir a ser uma poderosa ferramenta a fim de disciplinar o absentismo – na função pública o absentismo estava estimado em 7% antes da pandemia –, bem como o alheamento profissional. Por fim, a adopção de novas formas de trabalhar será também uma oportunidade para rejuvenescer a função pública.
O futuro do trabalho tem sido amplamente discutido lá fora e também cá dentro. Todavia, trata-se de uma reflexão que precisa de ser confrontada com períodos de alguma acalmia, no que diz respeito à pandemia, para se perceber a permanência do teletrabalho e dos seus primos híbridos. Ainda assim, é uma modalidade que, de forma mais ou menos híbrida, veio para ficar.
No caso do sector público, algumas funções tornar-se-ão obsoletas – estima-se que até 8% dos empregos estão em risco – e novos investimentos em tecnologia (encriptação, “cloud” e “big data”) serão solicitados. Mas para que tudo isto seja aproveitado com efectiva vantagem são os utentes dos serviços públicos que terão de estar no topo das prioridades. Caso contrário, será todo ele um exercício em circuito fechado. Este seria, aliás, outro equívoco (e pouco digital).
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