O futuro do trabalho quando ninguém quer trabalhar

Dois anos depois da desmaterialização abrupta do trabalho urge pensar numa mudança de paradigma, muito mais do que numa "alteração temporária de espaço e de horário, ou de forma de trabalhar".

Esta semana, em conversa com uma amiga prestes a regressar ao escritório da sua empresa para trabalhar em regime híbrido, depois de um processo de onboarding em plena pandemia e de dois anos a trabalhar, todos os dias, a partir do sítio que mais lhe convinha ou apetecia, dei comigo a pensar que não me imagino a voltar a uma lógica de trabalho com uma obrigação de me deslocar, todos os dias e, obrigatoriamente, para o mesmo lugar.

Essencial ou não essencial, remoto ou em pessoa, quase ninguém gosta muito de trabalhar neste momento“, escreve Noreen Malone no especial de “Future of Work”, traduzido livremente como “Futuro do trabalho”, publicado e capa da The New York Times Magazine há poucas semanas”. Na capa branca — que me deixou fascinada, pela estética, e curiosa, pelo conteúdo –, dois post-its chamam a atenção: no amarelo, em cima, como um título, lê-se: “O futuro do trabalho quando ninguém quer trabalhar”; no rosa, em rodapé, a nota: “Fotografia de uma secretária a explodir”. Daria vontade de rir, não fosse trágico.

A principal emoção que um trabalho provoca agora é a determinação de perseverar: se conseguirmos passar pelos próximos meses, talvez as coisas melhorem“, lê-se na mesma publicação, a propósito do fenómeno a que os especialistas já chamam de “great resignation”, a grande resignação. “Quando 25 milhões de pessoas deixam os seus empregos, é muito mais do que ‘apenas’ burnout. A satisfação no trabalho foi ao charco”. E a revista norte-americana chama a esse período da história que vivemos “A Era da anti-ambição“.

No texto, fala-se da transformação profunda do mercado de trabalho, via tecnologia, e da forma como também os trabalhadores mudaram. A humanidade mudou. “Toda a gente perdeu o contacto com os outros”, descreve a revista, detalhando os log-ins diários em plataformas como o Slack ou o Zoom, “onde os co-workers são bidimensionais ou avatares, e onde cada dia parece sempre ser o último”.

Dependendo do que está a acontecer com o vírus, os filhos podem estar em casa outra vez, tal como em março de 2020, a exigir atenção e a esgotar a energia mental. A internet está definitivamente lá, sempre, a exigir atenção e a minar a energia mental. Um trabalho parece apenas mais uma incursão, exigindo atenção e minando a energia mental“, detalha a revista. A categorização dos trabalhos como “essenciais” e “não essenciais”, dependendo da área de atuação e das necessidades inerentes a cada uma delas, no decorrer da pandemia, não terá ajudado muitas pessoas a sentir que, tendo outras abdicado das suas obrigações laborais — e outras sido consideradas tão essenciais nas suas atividades de trabalho — aquilo que faziam era menor, socialmente falando.

A revista escreve outra coisa muito interessante, considerando que, nos últimos anos, o ato de trabalhar foi despido. “Já não temos roupas para vestir, almoços para ir, pausas para café prolongadas nem clientes para conversar pessoalmente. O escritório está onde não deveria estar – em casa, nos nossos espaços mais íntimos – e tudo o que resta agora é o próprio trabalho, nu e solitário. E muita gente não gosta do que vê“.

Dois anos depois da desmaterialização abrupta do trabalho — uma transformação que muitas empresas antecipavam e que, algumas, já começavam a trabalhar sobre — urge pensar numa mudança de paradigma, muito mais do que numa “alteração temporária de espaço e de horário de trabalho, ou de forma de trabalhar”. A mudança é constante, não temporária. Uma coisa é certa: a pandemia parece ter quebrado um laço ou feito questionar a ligação que muitas pessoas tinham com os seus trabalhos, conduzindo a uma espécie de “desgosto”. Ao mesmo tempo, outra certeza: as novas gerações — filhas desta pandemia — não saberão o que realmente significa irem todos os dias, à mesma hora, para um mesmo lugar onde é suposto estarem com outras pessoas a fazerem o mesmo. Afinal, os sítios onde aprendem coisas novas todos os dias, desmaterializaram-se também. Escola já não é apenas um lugar. É o mundo todo.

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