O “lucro” do Estado Português SA
Se o Estado deixar de pagar qualquer despesa ou compromisso, Portugal será seguramente o país com mais lucro em todo o mundo: 90 mil milhões de euro. Já viram como é fantástico?
“Portugal dá lucro”. Quando li, num título, esta afirmação de Marisa Matias fiquei intrigado com o seu real significado. De onde viria esta noção? A que indicador se referia? Ao saldo das balanças comercial ou externa? Ao crescimento do PIB, que assenta no conceito de valor acrescentado? Era estranho porque nenhum dos indicadores positivos que temos se aproximam do conceito de lucro e nenhum dos que podiam aproximar-se é positivo.
Vista e ouvida toda a declaração da eurodeputada do Bloco de Esquerda percebi de onde vinha essa peregrina afirmação: “Um segredo bem escondido é que Portugal dá lucro. O excedente primário do Orçamento do Estado será de 6 mil milhões de euros mas devido ao serviço da dívida mais de 8 mil milhões serão canalizados para a finança…”.
Estas duas frases têm vários problemas e nenhum deles tem a ver com a maior ou menor concordância que se possa ter com as tradicionais posições do Bloco de Esquerda sobre finanças públicas, com o que se pense do seu realismo ou do balanço entre vantagens e inconvenientes que a sua aplicação teria numa economia como a portuguesa.
O primeiro problema é confundir Portugal com o Estado português. Bem sabemos que o Estado se intromete cada vez mais na economia e na vida dos cidadãos e que a carga fiscal é cada vez maior. Mas, por incrível que isso possa parecer, há vida, economia, empresas e trabalhadores para além do Estado. Apesar do peso do Estado, dirão uns. Graças ao Estado, responderão outros.
Depois, o “segredo bem escondido” está, afinal, no Orçamento do Estado e nos relatórios públicos que servem de apoio à Lei aprovada no Parlamento. E se está tão bem escondido que nunca ninguém tinha reparado nele é apenas porque não é verdadeiro.
Temos ainda a comparação com uma empresa, com a aplicação de conceitos capitalistas como “lucro” que não devem aplicar-se quando se fala do Estado.
Por fim, temos a lógica económica e financeira que leva à conclusão que “Portugal dá lucro”: se o Estado deixar de pagar os juros e encargos da dívida pública que contraiu durante as últimas largas décadas, as receitas que arrecada são superiores às despesas. As contas estão certas, o problema é que isto não é “lucro”.
Senão, proponho levar o conceito ainda mais longe: se o Estado deixar de pagar qualquer despesa ou compromisso, Portugal será seguramente o país com mais lucro em todo o mundo, que será igual a todos os impostos que cobra aos cidadãos mais taxas, multas e outras receitas. Um lucro de 90 mil milhões de euros, quase metade do PIB. Já viram como é fantástico?
O debate sobre a política orçamental do país, sobre a razoabilidade das regras europeias para as finanças públicas e, nessa sequência, sobre o Tratado Orçamental pode e deve ser feito. Mas se, pelo meio, enchermos a discussão de conceitos errados ou, no mínimo, enganadores, estaremos a atirar mais achas para a fogueira da iliteracia económica e financeira que já é um dos grandes atrasos do país e não precisa de ajuda para crescer. Essa falta de algumas noções sobre os mecanismos económicos e financeiros mais básicos desprotege muitos cidadãos na tomada de decisões das suas vidas ou nas escolhas eleitorais que vai fazendo.
É legítimo que o pacato cidadão pergunte: como é que há oito anos estávamos à beira da bancarrota, sem dinheiro para pagar salários, pensões ou aos credores daí a dois ou três meses e hoje temos “lucro”? Não há nenhum milagre porque não é verdade. Não temos “lucro”.
Da mesma forma que uma família se enganará se considerar que pode passar a ter “lucro” deixando de pagar a hipoteca da casa ou o empréstimo que contraiu para comprar o carro, todos nos enganaremos se assumirmos uma saúde económica e financeira que não existe no Estado.
Vamos aos números. A factura de juros que o Estado paga anualmente é de cerca de 8 mil milhões de porque as dívidas que o Estado acumulou somam cerca de 245 mil milhões de euros.
A ideia que está na base desta lógica é a de que esta dívida pública é de legitimidade questionável e que o seu pagamento pode ser opcional. E no entanto é simples: esta dívida foi contraída porque o Estado tem défice todos os anos, gastando mais do que recebe, e para cobrir essa diferença pede financiamentos regulares que, somados, atingem aquela trágica soma.
Por isso, não deixa de ser politicamente esquizofrénico que enquanto se contesta o exagerado peso da dívida e dos seus encargos se defenda logo a seguir que o Estado deve fazer mais défice e, por isso, contrair ainda mais dívida para o pagar.
Podemos questionar a moralidade de alguma da dívida que temos, nomeadamente a que foi contraída para socorrer alguns bancos, do BPN à CGD. Mas mesmo essa foi decidida e aprovada pelos governos e parlamentos em funções, alguma na presente legislatura. Mas se é para olhar para o Estado na lógica económica e contabilística das empresas, vamos então fazer um exercício mais completo.
Essa empresa, Estado Português SA, nunca, na sua vida democrática, tinha tido lucro. O conceito de resultado líquido só pode ser comparado ao saldo global das administrações públicas, vulgarmente chamado défice público ou do Estado. Podemos estar a caminho do primeiro lucro quando e se deixarmos de ter défice e passarmos a ter um excedente orçamental. Mas isso ainda não aconteceu e, aliás, uma boa parte da esquerda nem vê isso com bons olhos.
Com os prejuízos que foi registando ano após ano, essa empresa acumulou uma dívida que equivale a mais de dois anos e meio das suas receitas. Ou seja, se quisesse pagar a dívida, essa empresa teria que canalizar todos os euros que receberia durante esse período para a amortizar, sem poder fazer qualquer despesa, o que é, obviamente, absurdo.
Os seus desequilíbrios regulares já obrigaram, por três vezes nas últimas quatro décadas, a entrar em processos de gestão controlada em que participaram credores que a financiaram de forma extraordinária, já que empresa não estava em condições de cumprir as suas obrigações.
Esta é, por outro lado, uma empresa que faz os seus orçamentos ao contrário. Por regra, as empresas fazem uma estimativa da receita prevista com as suas vendas e dimensionam os custos em função disso. No Estado é ao contrário, sendo que nalgumas áreas não pode ser de outra maneira: estimam-se as despesas e depois fixam-se as receitas, porque a generalidade destas são coercivas e cobrá-las depende apenas da sua vontade. São os impostos e taxas.
Esta é uma empresa que não conhece o seu balanço. Não tem os seus activos e passivos devidamente consolidados e representados num único documento. Por exemplo, não sabe ao certo que imóveis tem nem o respectivo valor. E acontece muitas vezes que as responsabilidades futuras também estão largamente sub-avaliadas.
Em vez de “lucro”, temos afinal uma “empresa” que acumula “prejuízos” todos os anos, que tem um enorme desequilíbrio nas contas e que já viu a sua solvência ameaçada por várias vezes.
Nada que deixe os “accionistas” descansados nem deva encher de orgulho as sucessivas Comissões Executivas (governo) ou os vários Conselhos de Administração (Parlamento) que vão definindo a sua estratégia e gerindo este Estado Português SA.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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