Ordem e progresso

Um país que tanto preza o positivismo jurídico parece esquecer um dos principais postulados do Estado de direito e da separação de poderes: à justiça o que é da justiça, à política o que da política.

O lema da República Federativa do Brasil «Ordem e Progresso» é inspirado no pensamento positivista do século XIX. No final da sua vida, Auguste Comte quis elevar a aplicação da ordem e progresso a um sistema político que seria como uma religião sob o dogma da ciência. O republicanismo brasileiro foi bastante influenciado pela aplicação das ideias mais ortodoxas do positivismo à política. Mas a fé nesta religião secular mostrou-se longe de ser um remédio santo para os males do mundo dos homens. Pelo contrário, o racionalismo dogmático e a «política de perfeição», para utilizar a expressão de Michael Oakeshott, são responsáveis por alguns dos mais trágicos equívocos da humanidade.

Não é por isso de estranhar que apesar da sua divisa, e tal como todos os outros Estados, a República Federativa do Brasil não seja o reino da perfeição política na terra. Não que aí radiquem todos os seus males. Tal como não há uma solução política única e perfeita, as perniciosidades da história política do Brasil padecem dessa estranha condição dos fenómenos sociais e humanos de terem múltiplas origens e influências. Se a fé em leis científicas não salva o mundo, a fé em homens providenciais também não. Getúlio Vargas, o ditador-presidente que por mais tempo liderou o Brasil, era conhecido como «o pai dos pobres». Os últimos dias de estertor do seu poder estão impressivamente retratados no filme «Getúlio» (2014), onde Tony Ramos aparece bem longe do registo do herói das novelas.

Agora a novela é outra, mas a fé e a paixão parecem continuar a querer fustigar o Brasil. Uma das marcas mais presentes nas reações à detenção de Lula da Silva é a do clubismo exacerbado, típico dos dogmas, na maioria das reações contra e a favor. Basta uma pequena incursão não apenas pelas redes sociais mas também pelos jornais para se perceber que o padrão impera. E mais do que o «rouba mas faz» que se colou a políticos como Paulo Maluf, a polarização que vigora parece mais caracterizada por algo como «o meu corrupto é melhor do que o teu». No caso de Lula da Silva tudo isto é potenciado ao máximo: um antigo Presidente da República, com um indesmentível carisma político, já condenado em duas instâncias judiciais, mas ainda com possibilidade de recorrer a tribunais superiores. Repare-se como a sua história política, que se confunde com a das últimas quatros décadas do Brasil, serve como álibi ou atenuante para os seus defensores e como agravante para os delatores.

No meio de tudo isto, um país que tanto preza o positivismo jurídico parece esquecer um dos principais postulados do Estado de direito e do princípio da separação de poderes: à justiça o que é da justiça, à política o que é da política.

  • Docente do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

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