Os bodes, a culpa e a questão da habitação
Quando se discute o problema da habitação em Portugal – em particular em Lisboa e no Porto – a necessidade de arranjar o bode mais à mão para expiar culpas alheias não é exceção.
Os bodes expiatórios são uma maneira fácil de a culpa não morrer solteira, mas sem que se pretenda que entre o bode e a culpa se façam juras de amor eterno. E quando se discute o problema da habitação em Portugal – em particular em Lisboa e no Porto – a necessidade de arranjar o bode mais à mão para expiar culpas alheias não é exceção.
Para quem se tente desviar de soluções e discursos fáceis, o problema habitacional não pode deixar de resultar da conjugação de múltiplos fatores, que se entrecruzam numa teia complexa de causas e consequências, em que quase nunca é evidente estabelecer o nexo de causalidade entre determinado resultado e este facto ou aquela política.
Na verdade, o que se tem vindo a assistir no espaço público é a utilização da questão habitacional como uma arma de arremesso, ao sabor da cor da camisola de quem a enverga, que pretende mais ferir o adversário do que curar o problema, sem uma reflexão séria e consequente sobre as soluções a ser implementadas. A questão da habitação, pela sua seriedade e transversalidade, deve ser uma das políticas a requerer um esforço de convergência apartidária, criando o ambiente propício à adoção de políticas – e reformas – necessárias ao imperativo aumento efetivo da oferta habitacional sustentável – seja através do funcionamento do mercado ou, fora dele, com o apoio público, nas múltiplas formas que pode assumir.
O Estado lato senso, incluindo necessariamente a capilaridade e proximidade das autarquias, tem um papel fundamental (e constitucional) a desempenhar nesta questão e, deveria, num primeiríssimo passo, antes de lançar mão a quaisquer fundos, fazer uma análise séria do património imobiliário de que é titular, otimizando a sua utilização, e percebendo quais dos seus imóveis podem ser destinados a ajudar a mitigar a falta de oferta de habitação a preços acessíveis. Relembramos o diploma que determina a realização do inventário do património imobiliário do Estado com aptidão para uso habitacional e cria a bolsa de imóveis do Estado (Decreto-lei n.º 82/2020, de 2 de Outubro), mas do qual ainda não se conhecem grandes frutos. Antes de fazer este esforço, o Estado dificilmente terá muito a dizer sobre a forma como os particulares utilizam o seu património.
E a propósito do papel do Estado, num período que deveria ser já de plena implementação do PRR, começa a surgir o receio de (mais) uma oportunidade perdida. E seria a habitação uma das áreas em que estes fundos poderiam ser utilizados, criando programas ou reforçando os existentes (arrendamento acessível ou apoiado, de renda condicionada, de habitação a custos controlados…) para permitirem uma oferta efetiva de habitação a preços acessíveis, incluindo jovens e classe média, não esquecendo a requalificação da oferta da habitação social existente.
E estas preocupações não deverão colocar-se à margem do funcionamento do mercado, onde deverão ser criadas regras para que funcione de forma equilibrada, começando desde logo por garantir a confiança dos investidores (nacionais e estrangeiros), através da manutenção de um quadro jurídico estável e coerente, evitando alterações legislativas avulsas (veja-se, a título de exemplo, a aprovação de um regime de concessão de vistos a digital nomads ao mesmo tempo que é pré-anunciado o fim dos golden visa, dando sinais em direções opostas). Outra terapêutica necessária é a criação de um quadro jurídico que permita a existência de um mercado de arrendamento dinâmico, com a necessária proteção do inquilino, mas também do senhorio, designadamente face a situações de incumprimento, com incentivos significativos ao arrendamento de duração prolongada.
E poderíamos continuar, mas por ora ficamos a olhar para aquele prédio lindo, vazio, aqui na rua, que dizem os vizinhos que “é da câmara”…
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