Os calotes do Estado estão a aumentar
O ministro das Finanças e a secretária de Estado do Orçamento têm andado numa roda-viva por causa do OE de 2022. Mas seria preferível (e exigível) que pusessem ordem na casa.
É da praxe: todos os anos encontro motivos para escrever sobre os pagamentos atrasados do Estado aos seus fornecedores. Regra geral, costumo fazê-lo duas vezes por ano e em 2021 não será diferente. O artigo de hoje é o primeiro da série 2021, mas estou certo de que haverá pelo menos mais um. E por falar em orçamento, quem nos últimos dias teve razão foi o Partido Comunista. Pois, para quê discutir o Orçamento do Estado de 2022 se o de 2021 continua a não ser executado como devia ser? Não sou eu que o digo. É o que se retira do balanço feito pelo próprio ministro das Finanças ao conjunto de medidas acordadas com os seus parceiros parlamentares (34 implementadas, 39 por implementar). E é também o que resulta da análise à execução orçamental ao final de Junho na qual se constata que i. o investimento público está a crescer poucochinho (+6,2% face ao período homólogo, bastante abaixo da estimativa de +30,7% apontada para o final do ano em contabilidade pública), e; ii. os pagamentos atrasados do Estado estão novamente a aumentar. É a este segundo ponto que dedico o artigo de hoje.
A execução orçamental divulgada há dias pela Direcção-Geral do Orçamento (DGO) indica que os pagamentos atrasados das administrações públicas mais do que duplicaram no espaço de seis meses. Em Dezembro passado, os montantes por pagar há mais de 90 dias correspondiam a 379 milhões de euros. Seis meses depois, no final de Junho, o total em dívida já ascendia a 836 milhões (anexo A17).
Para este aumento, contribuíram essencialmente os hospitais públicos. Na sequência da divulgação destes números, o Conselho Estratégico Nacional de Saúde, que representa 4500 empresas do sector, manifestou em comunicado o seu descontentamento e fê-lo, diga-se de passagem, muito bem, afirmando sem margem para dúvidas: “Não é aceitável que o Estado e o SNS se financiem crescentemente nos fornecedores”. Mas a Saúde não é o único sector a dar dores de cabeça aos fornecedores privados. Há outras entidades da administração pública, noutras áreas do Estado, que também estão há muito em falta.
A táctica não é de agora. A exemplo das cativações orçamentais e da sub-execução da despesa pública, o recurso à retenção de pagamentos faz parte do arsenal ao dispor do ministro das Finanças. Todavia, o não-pagamento atempado das dívidas comerciais do Estado serve apenas para gerir a liquidez em tesouraria.
Encontrando-se a dívida reconhecida ela é de imediato contabilizada para efeitos de contas públicas, independentemente de ser paga ou não. É, portanto, duplamente preocupante que o Estado vá acumulando estes calotes. Por um lado, revela um total desprezo pelas suas contrapartes comerciais, representando uma grossa violação da directiva europeia contra pagamentos atrasados (que concede aos credores o direito a juros de mora à taxa de 8% ao ano). Por outro lado, indicia também uma má gestão do ciclo de tesouraria das administrações públicas que, por sua vez, põe em risco a provisão dos serviços públicos pela incapacidade de assegurar pagamentos atempados aos seus fornecedores.
Quais são então as entidades com pior registo nesta matéria? Na administração directa do Estado, à data do último reporte disponível na página da DGO (Março de 2021), trata-se de uma entidade que vai pelo nome de Gestão Administrativa e Financeira da Cultura, cujo prazo médio de pagamento (repito, prazo médio) é de 714 dias. O ridículo tem disto. Anda o ministro da Economia a inventar linhas de apoio ao sector da cultura, ao mesmo tempo que a colega na Cultura vai permitindo estes desvarios a entidades sob sua tutela. Outro exemplo curioso é o da Direcção Geral da Administração e Emprego Público, sob tutela da ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública. Prazo médio de pagamento: 490 dias. Modernização? Pois claro, está à vista de todos! Para além de não existir modernidade alguma, a tradição também já não é o que era. No ministério da Defesa, do qual se esperaria disciplina militar, sai o infeliz caso do Instituto de Acção Social das Forças Armadas que paga a 430 dias.
O problema não se resume à demora no pagamento. Há um outro grave problema de mora: os dados que habitualmente eram publicados com regularidade e de forma atempada deixaram de o ser. No caso do sector empresarial do Estado, os últimos dados sobre prazos médios de pagamento disponíveis na página da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças, referem-se a Dezembro do ano passado. E no caso dos dados referentes às autarquias, disponíveis no Portal Autárquico, as últimas informações referem-se a Dezembro de 2019. Razão tinha o Conselho de Finanças Públicas quando há meses denunciou as lacunas de informação nas contas dos municípios. Isto para não falar das lacunas do próprio processo orçamental em Portugal, que está parado no tempo.
Enfim, o ministro das Finanças e a secretária de Estado do Orçamento têm andado nos últimos dias numa roda-viva por causa do Orçamento de 2022. Mas antes de irem para a rua, seria preferível (e exigível) que pusessem ordem na casa.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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