País Tablóide

No Verão Portugal para para ver o Mundo passar. E o Mundo passa. Estas são observações sobre um Portugal morto que se contempla em adoração.

Pandemia de vacinas, massacre de futebol, crimes bucólicos, gula gastronómica, violência doméstica, o regresso dos turistas, roteiros de bicicleta, o Portugal desconhecido que espera por si nos lugares de sempre com o toque esquisito da banalidade de sempre. Incêndios, piqueniques, praia e férias junto ao rio das trutas no interior parado. No Verão Portugal para para ver o Mundo passar. E o Mundo passa. Estas são observações sobre um Portugal morto que se contempla em adoração.

Nas cidades ao fundo da Avenida bebe-se um café com quarenta graus à sombra e aquela rapariga de tanto passear agita o açúcar na chávena a escaldar. É o Mediterrâneo em Agosto em pleno Verão, o Sol a pino e ninguém faz uma Revolução. No rio parte um navio com a maré a encher e o céu vermelho que parece mesmo que está a arder. Ao longe ainda se pode escutar uma velha canção dos Radar Kadafi saída do escape e misturada com a contribuição individual para o aquecimento global.

Percorro a A8 em direcção ao Norte. O calor no asfalto parece um rio na Amazónia onde as árvores queimadas são substituídas por prédios anónimos num subúrbio confuso e delirante. Ninguém nas janelas, ninguém na rua, apenas a ansiedade dos automóveis na pressa de chegar primeiro a lugar nenhum. Na paisagem os placards prometem o paraíso a metade do preço e promoções que rasgam como chicotes a compreensão dos condutores distraídos. Passa-se um multi-posto metálico à largura da auto-estrada, uma espécie de Checkpoint Charlie, um verdadeiro posto de fronteira entre a cidade e o campo, sem mesmo faltar o pagamento de um visto de entrada. A partir daqui estamos em território inóspito, desconhecido do condutor, mas assinalado com todo o rigor no GPS. Não é o Rio Congo, mas é uma seta apontada para a aventura.

Do lado direito da via construída com fundos europeus, ilhas de aerogeradores marcam o castanho da paisagem contra o azul do que resta do céu, perfeitamente alinhadas numa geografia que desdenha do caos das Caraíbas. As ilhas têm uma disciplina invisível, uma orientação enigmática e as hélices rodam como experiências brancas que produzem um ecrã de electricidade que escorrega pelos cabos de tensão. As Torres Brancas são um sinal dos tempos e parecem querer acelerar o Planeta em direcção a um destino inócuo, renovável, verde, perfeito. As Torres Brancas saíram de um romance de Tolkien e são as pioneiras de uma nova Floresta Encantada.

Mas qual o segredo da orientação geográfica? Quais as equações fantásticas que ditaram o ângulo de abordagem contra o vento? As ilhas de aerogeradores são o produto da tecnologia que nos irá salvar da catástrofe climática, logo devem ter mecanismos altamente sofisticados de posicionamento auto-referencial e interactivo com vista a uma eficiência máxima e a um custo mínimo. Subitamente o júbilo e a desilusão. O olhar cirúrgico de um condutor mais inquieto repara que cada ilha de aerogeradores assenta num cemitério de velhos moinhos de vento. De repente a viagem imaginária alonga-se duzentos anos para o passado e é toda uma Revolução tecnológica, industrial, política, social, que desfila invisível e em silêncio pelas terras anónimas e desabitadas. A inovação baseia-se nos ventos do passado, irradia dos moinhos de D. Quixote agora transformados em ciclopes da Guerra dos Mundos. O passado escondido no futuro como solução para a catástrofe climática.

Num Verão marcado por explosões climáticas extremas, inundações diluvianas, discursos políticos desesperados, declarações circunstanciais que apontam para um futuro marcado por uma qualquer Política da Catástrofe, sobra apenas a intenção de pintar o Sol com as palavras, saquear o Carbono da atmosfera sustendo a respiração, depois de séculos de omissão anunciar a emissão de uma viragem na sorte mais do que no engenho. Com a ideia de “Justiça Climática” na linguagem das cartas ideológicas, a política mais parece uma variante do revanchismo pós-capitalista e a racional organização da decadência. Alguém está disposto a inverter a comodidade de um Mundo previsível encaixado nos chips e na sílica de um smartphone?

Há uma profunda atracção pelo Horizonte das Catástrofes. Desde os romances pós-apocalípticos, passando pelos Filmes Catástrofe de Hollywood, não esquecendo as séries que retratam as novas Utopias do Futuro, um Mundo sem Oxigénio, uma pandemia de Zombies, imagens e mais imagens que substituem a realidade pela deformidade e a extinção. A atracção pelo abismo é tão natural como o alcance da imaginação – sem imaginação morrer é simples; com imaginação morrer é extremo.

A natureza das Catástrofes é não serem anunciadas. Mas no estado do Mundo actual, a Ciência torna-se o fetiche de todas as previsões e de todas as soluções. E daqui nasce a falsa sensação de segurança que começa agora a evaporar-se do Mundo. Já se passou a fase dos “rinocerontes cinza”, onde os acontecimentos ainda estão no radar das “surpresas previsíveis”. Estamos no limiar da zona dos “cisnes negros”, uma periferia inóspita em que existe a probabilidade dos “eventos desconcertantes” que não são “minimamente previsíveis”. Sobra a categoria dos “reis dragões”, circunstâncias de tão “larga escala” que se colocam do outro lado da imaginação. Alérgicos à verdade, sonhamos assistir ao Fim do Mundo em directo na televisão.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

País Tablóide

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião