Poder e responsabilidade no controlo de idoneidade
No ano que assinala uma década do Mecanismo Único de Supervisão o controlo de adequação e idoneidade é hoje componente fundamental daquela “moeda de troca”, somando atributos sujeitos a fiscalização.
É uma máxima conhecida, no mundo do direito e não só, essa de que o poder atrai responsabilidade, numa relação de implicação recíproca, em que o grau de responsabilidade aumenta na medida da relevância do poder exercido.
Em sectores regulados como a banca, a intermediação financeira, os seguros, a gestão de ativos ou a auditoria, a responsabilidade assumida por entidades privadas no exercício de atividades de interesse público vale como contrapartida ou “moeda de troca” pelo acesso a esses mercados. Além do cumprimento dos requisitos legais e regulamentares aplicáveis, na perspetiva geral da organização, essa responsabilidade traduz-se também, de forma visível e crescente, em exigências de fit and proper, isto é, de adequação e idoneidade de dirigentes e titulares de participações qualificadas de entidades que operam em mercados regulados.
No ano que assinala uma década do Mecanismo Único de Supervisão, com impacto transformador nos diferentes domínios da regulação e supervisão bancária e não só, o controlo de adequação e idoneidade é hoje componente fundamental daquela “moeda de troca”, somando atributos sujeitos a fiscalização regulatória (qualificação, independência, disponibilidade, diversidade, etc.).
Subsistem, ainda assim, questões e inquietações legítimas, associadas ao risco de um controlo desta natureza poder degenerar em juízos discricionários de apelo a perfis de suposta virtude ou exemplo (ético, moral ou de outra natureza).
Essas interrogações e inquietações seriam idealmente superadas através do teste judicial dos critérios adotados em cada caso, com benefício para a segurança jurídica e para a igualdade de tratamento dos visados. Entre nós, porém, esse teste, salvo três ou quatro decisões conhecidas de tribunais superiores, continua por fazer. E assim continuará em virtude da dinâmica própria deste sistema de controlo, em que as decisões são muitas vezes tomadas e comunicadas em base informal, com antecipação do sentido decisório provável do supervisor, desencadeando como reação a desistência da candidatura ou a renúncia preventiva ao cargo, sem que o visado espere por decisão – por vezes equivalente a uma quase “morte profissional” – que o declare inidóneo.
Com isto voltamos ao binómio poder e responsabilidade, agora com inversão de papéis e protagonistas. Neste sentido: ao poder que se confia aos supervisores de decidir quem pode aceder a (ou ser vetado ou banido de) funções dirigentes ou posições acionistas num determinado mercado, com a inerente tensão com a liberdade de exercício de profissão e de iniciativa económica, há-de corresponder um grau de responsabilidade congruente, a reclamar linhas vermelhas bem definidas. Por exemplo, circunscrevendo o controlo a factos objetivos e documentados, longe de meras vozes ou rumores públicos, e com distribuição razoável do ónus da prova; concedendo plenas garantias de defesa e contraditório; fixando um período máximo de consideração de factos passados; e compatibilizando a relevância atribuída a factos que são objeto de processos sancionatórios (penais ou contraordenacionais) com a presunção de inocência.
Vale também aqui a mesma lógica da “moeda de troca”, neste caso a expensas dos supervisores, como garante do exercício equilibrado – ao mesmo tempo responsável e responsabilizante – de poderes públicos que chamam a si, materialmente e na prática, uma reserva de direito de admissão em mercados regulados.
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