Editorial

Quem se mete com António Costa leva

O primeiro-ministro despediu o presidente do Tribunal de Contas por telefone, mais uma machadada nas instituições, com a cumplicidade de Marcelo.

Jorge Coelho afirmou um dia, em março de 2001, que quem se mete com o PS leva. Foi uma expressão que ficou para a história, uma certa forma de exigir ‘respeitinho’ perante um partido que tantas vezes se confunde com o Estado e, ironicamente, em defesa de António Costa, então ministro da Justiça, que respondia a críticas do bastonário da Ordem dos Advogados, António Pires de Lima. Quase 20 anos depois, podemos reformular a frase. “Quem se mete com António Costa leva” e desta vez quem levou foi o presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira. Despedido pelo telefone.

Podem alguns andar distraídos com os milhões de Bruxelas, o tango do orçamento entre o primeiro-ministro e os líderes do Bloco de Esquerda e do PCP e as encenações de crise política, ou com Donald Trump e a Covid-19, mas o que realmente importa discutir hoje em Portugal é a forma como António Costa exerce o seu poder quase absoluto e a constatação de que, com estas decisões, que se repetem, que fragilizam instituições e a sua independência, não será possível esperar um país desenvolvido e a sair da estagnação em que vivemos há mais de 20 anos.

António Costa não é líder, é chefe, quer fiéis que lhe digam que ‘sim’ e suporta aqueles de quem não gosta mas deles precisa, como Pedro Nuno Santos dentro do Governo ou o Bloco de Esquerda. E quer domesticar todas as instituições que têm por objeto o escrutínio do Governo.

Mas se isto já é grave, é pior ainda que o país assista de forma mais ou menos resignada a estas intervenções, a começar pelo Presidente da República. E que António Costa as execute sem contestação. Foi com a Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, é agora com Vítor Caldeira, o juiz-conselheiro presidente do Tribunal de Contas. Mas poderíamos recordar as críticas públicas a Teodora Cardoso, então presidente do Conselho das Finanças Públicas, ou a pressão junto da OCDE contra Álvaro Santos Pereira por causa de um relatório sobre o que não estava a ser feito na luta contra a corrupção, e o sms a um diretor-adjunto do Expresso, João Vieira Pereira, e que, à data, em maio de 2015, antes das eleições que levaram Costa a São Bento, foi visto como um fait-divers. Hoje, ao fim de cinco anos de exercício de poder, já podemos afirmar, sem margem para dúvidas, que há um padrão de comportamento.

Irritadiço e mau feitio são eufemismos. Ao fim de cinco anos como primeiro-ministro, António Costa mais parece seguir a estratégia de Trump, varre quem lhe aparece pela frente, com a cumplicidade inexplicável do Presidente da República que nada diz nem questiona.

O juiz-conselheiro Vítor Caldeira entrou em 2016, já com este Governo, e exerceu a sua função com exigência e independência. E foram várias as circunstâncias em que aquela entidade independente que tem por objetivo fiscalizar a forma como é usado o dinheiro público foi criticada de forma agressiva por membros do Governo ou do PS (como Fernando Medina) e pelo próprio primeiro-ministro. Um exemplo?

Vou ler o relatório com serenidade, mas a experiência tem-me dito que os press releases do TdC costumam ser bastante mais dramáticos do que aquilo que é a realidade efetiva do que consta dos relatórios”, afirmou Costa ao Observador, a propósito do relatório sobre a forma como foi utilizado o dinheiro do fundo de apoio aos incêndios de 2017 em Pedrógão Grande.

É claro que o Tribunal de Contas não tem a verdade absoluta, para isso é que todos os relatórios têm o contraditório das entidades e agentes políticos visados. Mas para quem não se cansa de dizer que a justiça e a política estão em planos diferentes, não deixa de ser curiosa a forma como António Costa fala de um tribunal como se fosse uma direção-geral e não como um outro órgão de soberania, como é o Presidente da República ou a Assembleia da República.

Num perfil publicado pelo Observador em 2014, António Costa foi assim retratado por quem o conhece bem. “Foi sempre um rapaz irritadiço, com mau feitio, mas com uma imensa capacidade de trabalho, afirma Ascenso Simões, que o conhece desde os tempos da Juventude Socialista, nos anos 1970, e que, no Governo de José Sócrates, foi seu secretário de Estado”. Irritadiço e mau feitio são eufemismos. Ao fim de cinco anos como primeiro-ministro, António Costa mais parece seguir a estratégia de Trump, varre quem lhe aparece pela frente, com a cumplicidade inexplicável do Presidente da República que nada diz nem questiona.

Todas as substituições são feitas sem qualquer explicação razoável, a não ser o desejo de António Costa de afastar os que garantem a independência dessas instituições e não chegam a conclusões alinhadas com o que decidiu. E para cada uma das pessoas substituídas é fácil encontrar decisões que puseram em causa o Governo e as suas decisões. Lembram-se das investigações de Joana Marques Vidal sobre Manuel Vicente e o “irritante” com Angola ou as viagens do Euro2016 que obrigou a uma remodelação? Lembram-se dos sucessivos relatórios do Tribunal de Contas, o último dos quais sobre o Código da Contratação Pública? O resultado foi sempre o mesmo, a substituição dos respetivos presidentes.

O afastamento do presidente do Tribunal de Contas, impedindo-o de fazer um novo mandato, como as substituições passadas, particularmente de Joana Marques Vidal, são tanto mais preocupantes quando vêm aí milhares de milhões e o primeiro-ministro repete à exaustão que vai haver transparência e escrutínio na sua execução. Podemos mesmo acreditar?

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