Queridos partidos, não querem sair da “bolha” e dar uma voltinha cá fora?
A diferença entre partidos contribuintes e o Zé da Esquina contribuinte é que os primeiros têm o poder de mudar a lei a seu favor. Mas não é bonito utilizar esse privilégio em interesse próprio.
Acreditem, queridos partidos, que não desprezo o fundamental papel que desempenham na democracia e na vida pública e política. Ele é tão decisivo que a qualidade destas depende, em grande parte, da qualidade da vossa actividade, dos vossos quadros, candidatos e eleitos.
É também por isso que o escrutínio que vos é feito é importante, seja ele formal, realizado por instituições do Estado, ou informal, feito pela sociedade civil.
Por esse serviço que prestam à sociedade, faz todo o sentido que uma parte importante da vossa actividade seja financiada directamente por dinheiros públicos, de forma transparente, sensata e justificada.
Agora, sejamos claros. Se não há democracia de qualidade sem partidos fortes, capazes e decentes, também é verdade que um regime saudável não pode ficar refém das vossas vontades e interesses particulares. Nem isso pode significar um permanente cheque em branco que vos é passado e muito menos um direito de saque sobre os recursos públicos que pertencem aos cidadãos contribuintes.
E quis-me parecer, no recente caso da alteração das regras de financiamento partidário, que alguns de vós sentem que têm esse direito e, pior ainda, que não têm sequer que justificar aos cidadãos porque o exercem.
Sabemos como as coisas se passaram. Pelo Natal, sob o pretexto de estarem a proceder a alterações legais sugeridas pelo Tribunal Constitucional relacionadas com a fiscalização das vossas contas, decidiram exceder esse objectivo e aumentar o vosso financiamento público e privado. Sem qualquer debate ou discussão pública, sem qualquer justificação de motivos e sem admitirem frontalmente ao que iam. Fizeram-no numa rara conjugação de interesses e vontades, que uniu PSD, PS, BE, PCP e Verdes. De fora ficaram o CDS e o PAN.
Perante a polémica, foram-se multiplicando as justificações, entre contradições, meias verdades e mentiras completas. Uns disseram que aprovaram mas afinal não estavam de acordo. Outros juram que são contra o financiamento público, mas concordaram em aumentá-lo. Outros ainda mentiram, dizendo que as alterações não significavam mais dinheiros públicos, como se o IVA adicional que vos seria devolvido caísse de uma árvore. Todos foram sonsos e demagógicos, começando por jurar que o processo tinha sido transparente mas reconhecendo, mais tarde, que afinal não tinha sido bem assim.
O veto presidencial obrigou-vos a voltar ao assunto, que resolveram agora da seguinte forma: mantêm todas as alterações menos a que vos iria devolver todo o IVA pago. Menos mal. Mas fizeram-no, mais uma vez, sem debate público, resolvendo tudo em cartel. Pretender que as justificações atabalhoadas e mentirosas que foram dando a reboque da polémica são um debate, é a prova de que não quererem mesmo discutir o tema.
Não foi bonito o espectáculo que deram. A responsabilidade é exclusivamente vossa, o populismo que possa haver também não é de terceiros e radica na falta de coragem que têm em assumir claramente perante os contribuintes: precisamos de mais do vosso dinheiro. Mas as pessoas não são estúpidas e perceberam perfeitamente o que se estava a passar.
Este deve ser o princípio. Porque é que precisam de mais dinheiro? Não querem justificar? As funções dos partidos não mudaram, não se conhecem alterações estruturais que o motivem. A subvenção estatal que recebem será, este ano, de 15,1 milhões de euros – subiu 10% depois de ter estado congelada desde 2008, porque, como sabemos, o país passou um mau bocado nos últimos anos. Será que estão a gerir bem as vossas casas? Têm as despesas controladas? Ou como é, em parte, o contribuinte que paga, não se preocupam demasiado com esses detalhes?
É que além da subvenção directa, estão ainda isentos da generalidade dos impostos. Sobre o assunto, eis o que diz a lei:
“Os partidos não estão sujeitos a IRC e beneficiam ainda, para além do previsto em lei especial, de isenção dos seguintes impostos:
- Imposto do selo;
- Imposto sobre sucessões e doações;
- Imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis, pela aquisição de imóveis destinados à sua atividade própria e pelas transmissões resultantes de fusão ou cisão;
- Imposto municipal sobre imóveis, sobre o valor tributável dos imóveis ou de parte de imóveis de sua propriedade e destinados à sua atividade;
- Demais impostos sobre o património previstos no n.º 3 do artigo 104.º da Constituição;
- Imposto automóvel nos veículos que adquiram para a sua atividade;
- Imposto sobre o valor acrescentado na aquisição e transmissão de bens e serviços que visem difundir a sua mensagem política ou identidade própria, através de quaisquer suportes, impressos, audiovisuais ou multimedia, incluindo os usados como material de propaganda e meios de comunicação e transporte, sendo a isenção efetivada através do exercício do direito à restituição do imposto;
- Imposto sobre o valor acrescentado nas transmissões de bens e serviços em iniciativas especiais de angariação de fundos em seu proveito exclusivo, desde que esta isenção não provoque distorções de concorrência”
Não me custa admitir que tudo isto se justifica para termos partidos fortes e cumpridores do seu papel na sociedade. Vamos deixar de lado o facto deste regime vos colocar numa “bolha” fiscal e de não entenderem muito bem o que significa isso de “carga tributária” que custa a pagar a muitos contribuintes. Talvez vos faça falta viver um pouco da vida real, que obriga a fazer contas e a muita ginástica de tesouraria para pagar os impostos que vocês aprovam para os outros pagarem.
Mas, se não fosse pedir demais e já que querem rever o regime de financiamento, era importante quantificar o apoio público indirecto concedido através destas isenções, para sabermos do que estamos a falar. Não sabemos se, por ano e em média, isto significa 50 mil euros ou 5 milhões de euros. E é um absurdo não o saber.
Depois, com todos os dados em cima da mesa, comparando com a prática noutros países e com uma justificação decente talvez possamos concluir que os partidos precisam de mais dinheiro. Ou não, porque os estudos até podem indicar o contrário.
Quando se reclama mais dinheiro dos contribuintes e se está a conduzir os processos de boa fé e com transparência, é importante apresentar contas e justificá-las. Não querem fazê-lo, num acto de pedagogia democrática? Se bem esclarecidos, os cidadãos compreendem que a democracia tem custos que compensa largamente suportar.
Adiante. Preocupou-me muito a justificação que deram para o alargamento da isenção de IVA a todas as vossas actividades: a arbitrariedade da Autoridade Tributária na avaliação do que pode ou não ser dedutível.
Pois é, bem-vindos, mais uma vez, ao mundo real. Não desconhecem que a Autoridade Tributária que decide sobre o vosso IVA é a mesma que decide, diariamente, de acordo com os mesmos critérios – ou falta deles – sobre milhões de outros contribuintes, particulares e empresas, pois não? É irritante, não é? Muitas vezes, o sentimento de injustiça e impotência é grande, mas não há nada a fazer, porque o fisco pode, quer e manda de acordo com as leis que vocês aprovaram.
Nunca vos preocupou a arbitrariedade da AT em relação ao comum dos mortais? Nunca vos passou pela cabeça que, para muitas micro empresas, um conflito fiscal de poucos milhares de euros pode ser a diferença entre a sobrevivência e a morte? Alguns de vocês têm conflitos judiciais com o fisco porque querem reaver aquilo que acham que é vosso. Estão no vosso mais básico direito e devem exercê-lo plenamente. Mas sabem quantos milhares de outros contribuintes travam diariamente lutas semelhantes? É lamentável que isso nunca vos tenha inquietado. Mas pior do que isso é que, perante um problema que afecta largos milhares de contribuintes, apenas vos ocorra resolver o vosso problema concreto, estando-se “nas tintas” para todos os outros.
A diferença entre os partidos contribuintes e o Zé da Esquina contribuinte é que os primeiros têm o poder de mudar a lei a seu favor. E foi isso que fizeram, ou tentaram fazer. Mas não é bonito utilizar esse privilégio em interesse próprio sem cuidar de injustiças semelhantes por que passam os reles contribuintes.
O uso desse privilégio vale oito milhões de euros em cinco anos para os vossos cofres, que saem dos bolsos dos contribuintes.
Se o objectivo é altruísta, como dizem, e pretende apenas clarificar a lei sugiro uma alínea: “Os partidos não têm qualquer isenção de IVA”. Mais simples do que isto não há e acabam-se as arbitrariedades dos malandros da Autoridade Tributária convosco. O que acham?
Depois, há também a questão do financiamento privado. Salvaguardadas as questões de transparência e de prevenção de tráfico entre pagamentos e decisões públicas, não me repugna nada que façam pela vida e encontrem formas de aumentar as vossas receitas. Neste ponto particular, saúdo especialmente a posição verdadeiramente empreendedora do PCP, que defende que os partidos devem ser financiados exclusivamente por fundos privados sem ter o Estado a “meter o nariz” onde não é chamado. É um manifesto muito liberal que faria furor no palco da Web Summit.
O ponto, aqui, é que o limite que aboliram é o que respeita aos contributos privados que, pela sua natureza, permanecem anónimos. Não passa pela cabeça de ninguém que as receitas angariadas em eventos partidários como a Festa do Avante ou o Chão da Lagoa possam ser todas registadas com montante e respectivo contribuidor. Nem a mente mais policial e legalista considera possível ou sequer saudável que se possa obrigar a registar cada bifana servida, cada cerveja bebida, cada bilhete, rifa, boné ou t-shirt vendidos para entregar os dados à Entidade das Contas. Quando perderem a informalidade própria dos pequenos paraísos fiscais e legais, estas nossas festas e feiras populares perdem também a graça que têm.
Mas se é assim, e vamos assumir que não pode ser de outra maneira, então não digam que o regime é transparente e verificável, porque não é. O dinheiro que dizem que ali angariam é o que quiserem reportar, sem que ninguém o possa confirmar.
E rezem para que um destes dias a ASAE não vos apareça por lá com agentes de pistolas-metralhadoras em punho para verificar facturas, contrafacções e se a mostarda para os pregos está dentro do prazo de validade, como já aconteceu em feiras como a do Relógio em Lisboa ou a das terças-feiras em Viseu. Aqui, voltamos aos contribuintes de primeira, que são vocês, e aos de segunda, que são os feirantes que também querem fazer pela vida. Têm a certeza que não querem sair da “bolha” e dar uma voltinha cá por fora? Fazia-vos bem.
Ainda sobre isto, quer-me parecer que estão a “ter mais olhos do que barriga”, como se diz na minha terra. Eu explico. É grande a vossa crença na capacidade de angariação de donativos por muitos cidadãos anónimos além do limite total de 640 mil euros anuais que decidiram abolir.
Mas o que sabemos, sobretudo nos casos do PSD e do PS, é que nem as regulares quotas dos militantes – de um euro por mês? – conseguem cobrar. Por isso é que em alturas de eleições internas, como aconteceu recentemente com os social-democratas, é um corre-corre de pagamentos de quotas atrasadas, muitas vezes feitos por atacado por beneméritos anónimos que, numa atitude comovente, gastam milhares de euros só para permitir que os militantes de base, coitados, possam exercer o seu direito de voto. Sempre me questionei de onde vem verdadeiramente este dinheiro e se ele aparece devidamente registado nos dados comunicados à Entidade das Contas. Em nome da transparência que dizem defender, não querem esclarecer também este assunto? Quem paga isto e com que dinheiro?
E se não conseguem sequer cobrar as quotas a militantes, vão conseguir convencer assim tantos pequenos doadores anónimos? Ou, para que alguma coisa faça sentido, a palavra “pequenos” é que está a mais na frase anterior?
Esta carta já vai longa e não quero maçar mais. Acreditem que, ainda que não pareça, a intenção é boa. Má intenção seria ver-vos dar sucessivos tiros nos pés, como tem acontecido, e encolher os ombros sem preocupação. Uma preocupação que tem sobretudo a ver com a qualidade da democracia, que depende muito de vocês. Se não forem vós, partidos, os primeiros a contribuir para ela, todos os esforços que outros possam fazer serão em vão.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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